Marcus Vinicius

CURRÍCULO, CONHECIMENTO E TECNOLOGIAS DIGITAIS: REFLEXÕES ACERCA DE UMA “ESCOLA SOB SUSPEITA”
Marcus Vinicius Monteiro Peres
UFRJ


Muitos estudiosos do campo educacional acreditam que hoje em dia a escola se encontra em crise, ou “sob suspeita” (GABRIEL, 2008). Muitos professores da educação básica corroboram esta assertiva. Da mesma forma pensam muitos alunos, pais, famílias. A sociedade, em peso, em trânsito, em crise, olha para a escola e se pergunta: Qual sua serventia? Como educar nossos jovens? O que fazer para atrair sua atenção? Para onde vai a sociedade da “cultura digital” (BUCKINGHAM, 2010)?

Uma pergunta, sobre tantas outras, norteia os objetivos desse artigo: As tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC) modificam a relação entre sujeitos e conhecimento? A construção do conhecimento, mediada pelas tecnologias, suscita diferentes questões sobre seu funcionamento. Ele é diferente do mesmo processo sem essa mediação? Há possibilidade de surgimento de novas formas de se expressar através das tecnologias digitais? Essas configuram uma nova linguagem? Esse artigo tem por objetivo não dar respostas a essas perguntas, mas refletir sobre tais questões e apontar caminhos para reflexões mais aprofundadas sobre o tema.

Para tentar refletir sobre essas questões, iniciaremos pensando sobre a própria linguagem. Usaremos a definição de Walter Benjamin:

Resumindo: toda comunicação de conteúdos espirituais é língua, linguagem, sendo a comunicação pela palavra apenas um caso particular: o da comunicação humana e do que a fundamenta ou do que se funda sobre ela (a jurisprudência, a poesia). Mas a existência da linguagem estende-se não apenas a todos os domínios de manifestação do espírito humano, ao qual, num sentido ou em outro, a língua sempre pertence, mas a absolutamente tudo. Não há evento ou coisa, tanto na natureza animada, quanto na inanimada, que não tenha, de alguma maneira, participação na linguagem, pois é essencial a tudo comunicar seu conteúdo espiritual (BENJAMIN, 2011, P. 50).

Linguagem seria, então, uma forma de comunicar ideias, pensamentos, sentimentos. Podemos falar em distintas formas de linguagem: a palavra (como dita pelo autor), as imagens (e um conjunto de imagens concatenadas, os vídeos), os sons, dentre outras. Essas constituem diferentes linguagens, pois comunicam de diferentes formas.

Mas e se pensarmos na convergência dessas linguagens? Um filme converge vídeo e áudio, ele é um tipo de linguagem diferente? E um videoclipe, no qual o áudio toma forma de música, através da qual o vídeo passa (também) sua mensagem? Constitui ele diferente linguagem? E o caso das ferramentas digitais, e a convergência de todas essas linguagens? Na forma de uma ferramenta que potencializa o uso e a recombinação de diversos tipos de linguagens, as TDIC podem configurar uma nova linguagem?

Aposto que sim, e elenco uma construção típica das TDIC para exemplificar o porquê dessa assertiva: o meme. Ele expressa ideias de forma única e, ao mesmo tempo, múltipla. Uma única imagem, vídeo, texto, pode servir à comunicação de diversos tipos de ideias diferentes, e de diversas maneiras diferentes, pois o meme se recombina conforme seu produtor (imagens com diferentes textos, ou textos com diferentes imagens, imagens recombinadas com diversas outras imagens, da maneira mais múltipla possível).

A partir desse exemplo, aposto que, configurando uma nova linguagem (ou possíveis novas linguagens), as TDIC proporcionam uma nova forma de relação com o conhecimento. Afirmo também ser necessário um olhar mais cuidadoso sobre como essa novidade influi na relação de nossos alunos com o conhecimento, sua apreensão e significação (por exemplo, por que estudar e aprender quando se pode acessar?). Para tal, me reporto a alguns estudos sobre o conhecimento, sua produção, difusão, significação e reconhecimento enquanto objeto de importância dentro do campo educacional.

Segundo Ana Monteiro, estudos das chamadas “teorias críticas” contribuem para o melhor entendimento sobre as relações de poder que envolvem o currículo, mas desviam do foco central o que acontece efetivamente na escola (MONTEIRO, 2013, p.2). Segundo a autora:

No âmbito das chamadas teorias pós-críticas e pós-estruturalistas, estudos voltaram-se para a problematização das “relações entre conhecimento, poder e identidade social e, portanto, sobre as múltiplas formas pelas quais o currículo está centralmente envolvido na produção do social.”(SILVA, 1995, 190, APUD MONTEIRO, 2013, p.2)

A autora, citando obra clássica de Tomás Tadeu da Silva, mostra que a questão do conhecimento no currículo não é uma operação meramente cognitiva ou, simplesmente uma operação para extrair uma essência humana, mas como uma questão que articula o currículo à cultura. Para ela “Conhecimento é produção cultural disputada na fixação de sentidos do mundo, afirmando hegemonias, questão política, questão de poder” (MONTEIRO, 2013, p.16). Como se produzem, então, conhecimentos na cultura digital? Qual a relação da escola com esses conhecimentos? E o mais importante, existe relação da escola com esse conhecimento?

Acredito produtivo trazer essas reflexões sobre o conhecimento e seu status epistemológico, pois, já que ele é considerado como algo que existe e é produzido/disputado dentro da cultura, trazer essa questão para pensar como esse processo se dá na cultura digital é primordial. Independente das diferentes matizes teóricas e explicativas, muitos estudos apontam para uma intensa relação entre escola e cultura. Nesse sentido, como valores, práticas, e até mesmo uma linguagem largamente difundida (e que cresce cada vez mais) como a da cultura digital não entra na escola? Aposto que já está lá dentro.

Segundo Carmen Teresa Gabriel e Marcela Moraes de castro, o conhecimento é um bem simbólico, “distribuído desigualmente na sociedade” (GABRIEL E CASTRO, p.86). Se pensarmos no quadro teórico pós-fundacional, utilizado pelas autoras em seu artigo, que afirma que as significações se dão através e necessariamente na relação, e que são provisórias, como problematizar a questão do que se acessa através das TDIC? Como pensar em objetos, bens, valores, símbolos; conhecimento, significados em uma cultura que potencializa as relações em tempo, espaço e intensidade? Podemos pensar, por exemplo, sobre a provisoriedade (múltipla, dependendo de curtidas e comentários) de um post no facebook ou no status de verdade de um site encontrado através de busca no google. Como as pessoas se relacionam e significam tais assertivas? Que tensões se dão nos ambientes virtuais e digitais? São as mesmas do “mundo real”?

Aponto e aposto na especificidade dessas relações no campo virtual/digital, e da potencialidade do estudo mais aprofundado desse para compreender questões como o desinteresse dos alunos pela escola, dificuldade dos professores em preparar “aulas atraentes” (mais do que a plataforma ou o estilo, a não incorporação dessas novas linguagens e valores parece ser o problema. Uma aula “tradicional” que saiba incorporar elementos da cultura digital pode ser tão atraente quando qualquer outra), e questões como a indisciplina e a dificuldade de leitura e escrita dos alunos. Todas essas questões podem, pelo menos, ser melhor entendidas através da correlação entre cultura digital e escola, currículo e conhecimento.

Acredito também ser crucial pensar sobre o papel das TIDC na questão política e do político, tal qual trazido por Carmen Teresa Gabriel e Márcia Serra Ferreira, à luz da teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (GABRIEL E FERREIRA, 2012). A ideia das autoras é, a partir das perspectivas do campo do Currículo, compreender como se produz, classifica e distribui o conhecimento, e especialmente o “conhecimento disciplinarizado”, em meio ao jogo político. As autoras argumentam também que a produção de sentidos se dá dentro do discurso, em suas dimensões relacional e diferencial.

Acredito que essa perspectiva é produtiva também para pensar como se dão essas relações no campo digital, múltiplo e de uma agilidade e, de certa forma, efemeridade, muito maior do que percebemos fora dele. Como se dá esse jogo político na internet e em meios de aprendizado digital? Como estão sendo significados saberes escolares em sites, vídeos no youtube, e-books (cada vez mais difundidos e, na atual edição do PNLD, obrigatórios, inclusive). A luta política no âmbito digital deve ser problematizada. São as mesmas formas de disputa utilizadas fora dele? Se as disputas acontecem na linguagem, como elas acontecem em meio a múltiplas linguagens, ou a uma linguagem tão múltipla?

Se nos debruçarmos, por exemplo, sobre as relações entre a construção do conhecimento e as TDIC na História, vamos perceber que já há pesquisas em curso que estudam os impactos do uso dessas na produção do conhecimento acadêmico. Segundo Lucchesi:

As Novas Tecnologias de Informação e comunicação marcam o Tempo Presente, sendo ora pano de fundo, ora objeto, ora meio de diversas manifestações sociais ao redor do mundo. Em um revival estranho das mudanças trazidas pela globalização, começamos a pensar as espacialidades e temporalidades desse novo tempo de Cultura Digital, radicalmente virtual. Tudo isso, tem feito da Internet um interessante objeto-problema para a nossa disciplina. A relação entre História e Internet têm suscitado questionamentos inadiáveis sobre o uso da Internet como fonte e ferramenta de pesquisa, suporte de memórias e novo espaço público, lugar também de divulgação dos resultados de trabalhos historiográficos. (LUCCHESI, 2012 [1], p.1).

De acordo com a autora, podemos perceber que há intensas discussões no campo da historiografia sobre as influências das tecnologias no fazer historiográfico, que suscitam diferentes interpretações sobre como isso afeta e/ou modifica a prática do historiador. Historiadores já consagrados, como Carlo Ginzburg, Robert Darnton e Roger Chartier já se preocuparam em discutir, e historicizar, as modificações trazidas pela utilização das novas TDIC na prática historiográfica (LUCCHESI, 2012 [2]). Podemos então, ver, como as novas tecnologias afetam e são tema de reflexões da historiografia. E se elas influem na escrita da história, de que maneira influem na construção do conhecimento histórico escolar?

Minha aposta é que as TDIC proporcionam, sim, mudanças nessas relações, sejam elas entre sujeitos, desses com o conhecimento, e também no jogo político e da política, inclusive offline.

Reflexões sobre o trajeto e apontamentos para caminhos futuros
Reconheço que esse trabalho traz mais perguntas do que respostas, mas o meu objetivo foi pensar sobre questões levantadas pela interação e/ou integração entre a cultura digital, a escola, o currículo e o conhecimento. Acredito que as tecnologias dão uma “chacoalhada” no ambiente escolar, e naqueles que o pensam/administram/fazem, e que é mais profícuo refletir sobre a validade da integração desses meios à escola (considerando que eles já fazem parte dela) do que refutá-los como sendo prejudiciais ou distantes.

Não foi objetivo aqui demonstrar o enfraquecimento da escola diante desse processo. Muito pelo contrário. Acredito que a escola continua tendo, mesmo contestada, tal como afirmam Gabriel e Castro, “papel hegemônico e legitimidade como espaço institucional onde se estabelecem as relações com o conhecimento” (GABRIEL E CASTRO, p. 85). Através dessas reflexões, podemos fortalecer a marca do “escolar” dentro do jogo político na área da educação, redimensionando os debates.

Acredito ser necessário repensar também a formação do professor. As novas gerações de professores, mesmo já sendo formadas dentro da cultura digital, não necessariamente se apropriam desse debate, pois não basta que o indivíduo domine os meios tecnológicos atuais para que os procure entender ou leva-los para a sua prática. É profícuo levar esse debate, para que, mesmo que não adotem ferramentas das TDIC, os professores em formação possam compreender como se dão novas formas de leitura, escrita, e relação com o conhecimento e o currículo atualmente.

Compreendendo o currículo como espaço-tempo de fronteira cultural (MACEDO, 2006), como repensá-lo em função de novas linguagens que estão intrinsecamente ligadas com a distorção (e a aceleração) do espaço/tempo através das tecnologias digitais? Se acreditamos que a escola está em crise agora, e sua relação com a cultura digital é fundamental para a compreensão desses tempos difíceis, o que podemos esperar do futuro? Acredito que, se não nos voltarmos a pensar sobre isso, a “crise” tende a piorar, pois as tecnologias continuam avançando e conquistando mais espaço.

Se não refletirmos sobre isso agora (e se achamos que a escola e o professor estão “sob suspeita” agora), o que diremos daqui a 20 anos? Se não afirmarmos escola e professor como essenciais na relação com o conhecimento dito válido e necessário (ou seja, o currículo), estamos abrindo espaço para aqueles que afirmam (e tem interesses) que tal espaço e tais profissionais são cada vez menos necessários diante do “avanço tecnológico”.

REFERÊNCIAS
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BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem 1915-1921. São Paulo:Editora 34; Duas Cidades, 2011.
BARROSO, G. Crise da escola ou na escola? Uma análise da crise de sentido dos sistemas públicos de escolarização obrigatória. In: Revista Portuguesa de Educação, vol.21, no.1, p.33-58, 2008.
BUCKINGHAM, D. Cultura digital, educação midiática e o lugar da escolarização. Educação e realidade, Porto Alegre, v.35, n.3, p. 37-58, set/dez., 2010. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/13077
DEL POZO, Montserrat. Como trabalhar com notebooks na sala de aula do ensino médio? In. Revista Pátio Ensino Médio, ano 4, Nº 15, Dez 2012 / Fev 2013, p. 32 – 35.
DIAS, F.N. Currículo de História na Web: Uma abordagem discursiva de propostas da Educopedia para o Ensino de História. 2014, 181 f. Dissertação (mestrado em educação) - PPGE/UFRJ. Rio de Janeiro, maio de 2014.
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LÉVY, Pierre. Cibercultura. Editora 34, São Paulo/SP, 1999.
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2 comentários:

  1. Rafael MOura Roberti13 de maio de 2015 às 06:54

    Ótimas ideias! Recentemente li "Estratos do tempo" de Reinhart Koseleck. Ele diz, dentre outras, coisas muito interessantes sobre a aceleração do tempo presente e o sentimento de do futuro-agora promovido tanto pela mídia como pela velocidade impressionante das novas tecnologias que tornam os segundos atrás obsoletos. Contudo a possibilidade de nossa recpção continua a mesma. E nós também continuamos os mesmos. A escola por mais que use de ferramentas como computadores e tabets, por mais que tenha wi-fi estará com certeza distante desse mundo porque para refletir é preciso parar. O nosso cérebro não processa como um computador.Por outro lado, (ainda) não há um computador tão bom quanto ele.

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    1. Olá, Rafael!

      Obrigado pelo elogio. Gosto dos escritos do Koselleck. Já ki o "Futuro Passado", e uso até em aulas do ensino médio. Vou buscar esse livro que você indicou. Vlw!

      Concordo em parte com você, por uma questão que me persegue: Nosso cérebro tem uma propriedade chamada "plasticidade", que é a sua capacidade de adaptação a diferentes estímulos, ambientes... Será que a superexposição aos ambientes digitais não altera nem um pouquiiiiiiiiiiiiiiiinho a forma como nosso cérebro percebe/absorve o conhecimento, ou oitras coisas?

      Essa dúvida me persegue, ainda vou me aventurar pela neurociência um dia...

      Abraço! Obrigado pelo comentário!

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