O ENSINO DE
HISTÓRIA E A HISTORIOGRAFIA ESCOLAR NO BRASIL: CONSTRUINDO MEMÓRIAS E FORMANDO
IDENTIDADES
Débora Araújo Fernandes
UFTO
A
proposta dessa comunicação é analisar o ensino de História no Brasil, durante o
Império e nas primeiras décadas da República, através da produção e utilização
de manuais didáticos. A especificidade dos manuais se deve ao fato de que estes
foram conscientemente pensados e elaborados para serem utilizados e servirem
aos objetivos da educação escolar (CHOPPIN, 2009). Portanto, a historiografia
escolar se constituiu como uma das formas de materializar as finalidades
traçadas pelo Estado brasileiro para o ensino dessa disciplina.
Mas,
a partir de quais pressupostos podemos falar em ensino de História no Brasil? E
qual a relação desse ensino com a produção de manuais didáticos e o poder
político instituído? Schimdt propôs uma periodização da História do Ensino de
História e afirmou que “a construção do código disciplinar da História no
Brasil tem como marco institucional fundador o Regulamento de 1838 do colégio
D. Pedro II, que determinou a inserção da História como conteúdo no currículo”(SCHIMDT,
2012, p.78). Assim, encontramos o espaço embrionário do ensino de História no
Brasil, que vai se desenvolver no contexto de construção e consolidação do
Estado brasileiro, tornando-se um instrumento para a formação de uma identidade
nacional.
Nesse
sentido, Salles (2010) procura mostrar que a produção didática de História
desse período materializou as pretensões do Estado Imperial de forjar um
sentimento nacional, isso ocorreu especialmente por que os principais autores
de textos didáticos eram membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) e/ou professores do colégio D. Pedro II, tendo essas duas instituições
sido criadas como parte do projeto de consolidação do Estado brasileiro e os
seus membros mantinham estreitas relações com o poder político constituído.
Citando Bittencourt (2008), o autor afirma que isso se cristaliza no fato das
editoras demonstrarem clara preferência em publicar obras produzidas por
membros dessas instituições, visto que a utilização delas nas escolas dependia
de autorização institucional e dificilmente alguma obra que apresentasse tal
gênese receberia parecer desfavorável do conselho educacional.
Ainda
sobre o ensino de História durante o Império, Gasparello (2006) ressalta a
importância dos impressos didáticos (postilas,
lições, compêndios, entre outros), especialmente aqueles produzidos por
professores do colégio Pedro II, na construção de uma pedagogia da História, visto que, esses materiais adequavam o
conteúdo curricular as finalidades e aos objetivos do ensino, numa linguagem
apropriada para o ambiente escolar, e apresentavam suportes metodológicos
específicos a serem utilizados pelos professores durante as aulas.
Acerca
da pedagogização do saber histórico, Schmidt (2004), situando sua análise no
período republicano, demonstra a influência de Jonathas Serrano na construção
do código disciplinar de História, que no Brasil é marcado pela confluência da
pedagogia com a História. Jonathas Serrano foi professor do colégio D. Pedro II
e autor de compêndios de História e manuais didáticos voltados para formação de
professores. Segundo a autora, a produção didática de Serrano incorpora as
preocupações do governo republicano e dos intelectuais envolvidos com a
educação, especialmente no que tange à formação de professores e à renovação
pedagógica; além disso, revela os modos de pensar a educação e o ensino de
História do período.
Esse
processo de pedagogização da História se revela como uma estratégia utilizada
por autores de manuais didáticos para tentar alcançar os objetivos pretendidos
para a História escolar.
Para
Fonseca (1999) o livro didático, mais especificamente o de História, pode
ser percebido como um lugar de memória e formador de identidades, pois são não
apenas difusores do conhecimento histórico, mas depositários de uma memória
nacional que contribui para consolidar representações de uma origem comum para
os habitantes de uma nação.
Ao
analisar dois livros escolares do início da República no Brasil, Caldas (2005) também
utiliza o conceito de lugar de memória. Essa autora busca nas narrativas
contidas no livro História do Brasil
(1900), de João Ribeiro e no livro História
do Brasil para o ensino secundário (1918), do historiador Francisco Rocha
Pombo as disputas simbólicas, que se deram no contexto pós-proclamação da
República, para firmar tradições e construir uma memória nacional.
Bittencourt
(1993) afirma que com a instauração do regime republicano no país, ficou
latente a ausência de uma História nacional no ensino elementar. A partir de
então, aumentou a demanda por produções didáticas destinadas a esse nível que
atendessem a necessidade do regime de incitar valores cívicos e patrióticos nas
novas gerações. Os historiadores e intelectuais do período se lançaram ao
desafio. No entanto, a autora aponta uma especificidade entre a produção do Rio
de Janeiro e a de São Paulo. Segundo ela, os historiadores sediados no Rio de Janeiro
produziam textos escolares sobre a História nacional através de uma perspectiva
mais unitária e centralizada. Enquanto que, os de São Paulo pautaram a escrita
da História Nacional em acontecimentos regionais marcadamente ufanistas.
Ao
que tudo indica não foram apenas os historiadores paulistas que buscaram
afirmar-se nacionalmente através das especificidades regionais. Pois, em um
recente estudo Cardoso (2013) demonstra a relação entre o Instituto Histórico e
Geográfico do Pará (IHGP) e a constituição do corpus disciplinar de História no
Pará durante a Primeira República. Para isso, ela analisou duas obras didáticas
produzidas por membros do instituto, a saber, Alma e Coração (1900), de Hygino Amanajás e Apostilas de História do Pará (1915), de Theodoro Braga. Segundo a
autora a criação do IHGP, em 1900, acompanhou a criação de outros IHGs no
Brasil e tinha como objetivo “criar uma identidade nacional e colaborar com o
processo civilizador através de um dado olhar para o passado, os IHGs criam
discursos regionais onde os fatos e vultos dessa História local estavam
intimamente associados à História Nacional” (CARDOSO, 2013, p. 54).
Para
Cardoso (2013) os dois manuais didáticos paraenses, são produzidos em
consonância com os acontecimentos do cenário nacional e os paradigmas do IHGP,
que através da História e do seu ensino objetivava construir uma memória
histórica positiva para o passado da Nação. E não podemos deixar de mencionar
que, isso se dava sob a chancela do poder político instituído, pois o manual de
autoria de Theodoro Braga foi produzido por encomenda da Secretaria de
Instrução Pública do Pará e lançado como parte das comemorações pelo
tricentenário da cidade de Belém.
Através
do que foi exposto até aqui, pudemos observar que a tomada de manuais didáticos
como objeto de análise tem contribuído para evidenciar o processo de
constituição da História como disciplina escolar, pois é representativo de
conteúdos, memórias, metodologias e práticas. E esse processo está imbricado na
teia de relações políticas e socioeconômicas que circunda o ensino dessa
disciplina e que determinam a produção e circulação dos manuais didáticos.
No
entanto, não podemos ter a ilusão que eles apresentam o ensino tal qual ele se
dava de fato, pois entre o poder político instituído que determinava, através
da elaboração dos currículos, o conteúdo que deveria compor a obra e o autor,
que procurava adequar sua obra ao que havia sido estabelecido pelas
instituições oficiais, existia os professores e os alunos que se apropriavam
dos conhecimentos ali contidos e os reelaboravam de acordo com suas capacidades
cognitivas, necessidades e/ou interesses.
Referências
BITTENCOURT,
Circe. Os confrontos de uma disciplina
escolar: da história sagrada à história profana. Rev. Brasileira de
História, São Paulo, v. 13, nº 25-26, set 1992/ ago 1993, p. 193-221.
CALDAS,
Karina Ribeiro. Nação, memória e
história: a formação da tradição nos manuais escolares (1900 - 1922).
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Ciências
Humanas e Filosofia, 2005.
CARDOSO,
Wanessa Carla Rodrigues. “Alma e
Coração”: o Instituto Histórico e Geográfico do Pará e a Constituição do
Corpus Disciplinar da História Escolar no Pará Republicano (1900-1920). 2013.
129f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Belém: UFPA, 2013.
CHOPPIN,
Alain.“O manual escolar: uma falsa
evidência histórica.” IN: História da Educação. ASPHE/FAE/UFPel. V.13,
n.27. jan/abr/2009.
FONSECA,
Thais Nívia de Lima e. O livro didático
de História: lugar de memória e formador de identidades. In: SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA, 20., 1999, Florianópolis. História: fronteiras. Anais do
XX Simpósio da Associação Nacional de História. São Paulo: Humanitas –
FFLCH-USP/ANPUH, 1999, p. 203-212.
GASPARELLO,
A. M. Traduções, apostilas e livros
didáticos: ofícios e saberes na construção das disciplinas escolares. In:
ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 12., 2006, Niterói. Anais... Rio de Janeiro,
2006. Disponível em:
http://www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Arlette%20Medeiros%20Gasparello.pdf.
Acesso em: 20 de março de 2015.
SALLES,
André Mendes. O livro didático de
História do Brasil oitocentista: o instituto histórico e geográfico
brasileiro e a formação da identidade nacional. PerCursos, Florianópolis, v.
11, n. 2, p. 28-47, jul./dez. 2010.
SCHMIDT,
Maria Auxiliadora. História com
Pedagogia: a contribuição da obra de Jonathas Serrano na construção do
código disciplinar da História no Brasil. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 24,
n. 48, p. 189-211, 2004.
______________.
História do Ensino de
História no Brasil: uma proposta de periodização. Revista História da
Educação, Porto Alegre, v. 16, n. 37, p.73-91, maio/ago. 2012.
Como os manuais didáticos como objeto de análise tem contribuído para evidenciar o processo de constituição da História como disciplina escolar?
ResponderExcluirGERUSA CAROLINA KESTERING
Os manuais são importantes para a compreensão desse processo por que são produzidos de acordo com os objetivos e as finalidades pensadas para o ensino dessa disciplina em determinados períodos históricos.
ExcluirO livro didático de constituir a História como disciplina escolar?! Ou já não deveria ser isso posto e o livro didático entendido por seus produtores como ferramenta?
ResponderExcluirOs manuais didáticos isoladamente não foram os responsáveis pela constituição da História como disciplina escolar. Mas, foram importantes nesse processo por que, enquanto elementos da cultura escolar, contribuíram para a construção de saberes escolares. Não podemos entender os manuais apenas como ferramenta se considerarmos que muitos professores que atuaram com essa disciplina não tinham nenhuma formação na área e os manuais eram a sua única fonte de conhecimento.
ExcluirOlá Débora, gostei muito do seu texto e ele vem mais ou menos no mesmo caminho do meu. Você pontuou os manuais didáticos (o que chamarei de 'currículo') como lugar de memória e como lugar de construção de identidades. Me atrevo a pontuar que o currículo, enquanto dependente da chancela do poder político vigente, também é lugar das relações de poder. Neste sentido, se a função do ensino de história no princípio de sua inserção nas escolas era de formar uma identidade nacional, qual é, na sua visão, a nossa função hoje enquanto professores de História?
ResponderExcluirRebecca Carolline Moraes da Silva
Muito instigante o seu questionamento Rebecca. No decorrer da minha trajetória profissional já me fiz essa pergunta algumas vezes. E considerando minha prática como professora de História acredito que nossa função é fornecer ao aluno elementos que o permita compreender a realidade social em que vive, devemos desnaturalizar o presente através do conhecimento acerca do passado.
ExcluirO que percebo é que os livros tem muita influencia da época em que são escritios. Então como tornam nossos alunos leitores críticos, oapazes de ver além das entrelinhas?
ResponderExcluirSirlene Pio
De fato Sirlene os manuais e os livros didáticos são filhos de sua época. E fazer com que nossos alunos percebam isso é um grande desafio para nós professores. Nesse ponto cabe a habilidade e conhecimento acumulado pelo professor que o permita, não apenas reproduzir os conteúdos contidos nos livros didáticos, mas, problematizar o modo como tais conteúdos estão sendo ali apresentados.
ExcluirO que percebo é que os livros tem muita influencia da época em que são escritios. Então como tornam nossos alunos leitores críticos, oapazes de ver além das entrelinhas?
ResponderExcluirSirlene Pio