Emanuela Silva

AS ÁFRICAS QUE ENSINAMOS E APRENDEMOS: UM BREVE DEBATE SOBRE AS ABORDAGENS DA HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO BÁSICO
Emanuela de Moraes Silva
UFT


As discussões sobre o ensino de História da África e Cultura Afro-brasileira tem nos últimos anos ganhado espaço nos debates acadêmicos, grupos e movimentos sociais no Brasil. Reflexo da necessidade de desmistificar, quebrar estereótipos e distorções que foram construídas e cristalizadas sobre a África. Tomando consciência, que se diga, tardia, entendemos a relevância de levar essa abordagem ao ensino de História, no Brasil que, desde 1996, com a LDB e os PCNs em 1997, já sinalizavam a importância, nos temas transversais, das questões étnicas e pluriculturais do nosso país e que em 2003 é tornado lei que obriga, nas instituições escolares o ensino de História e cultura Afro-brasileira.

Entendendo a importância da inclusão da temática africana nas instituições de ensino para a formação de uma consciência histórica, livre de preconceitos e fortificada no discurso de pluriculturalidade e diversidade étnica que nosso país é formado, trazer esse tema para sala de aula também serve de elemento para a descristalizar a imagem que se tem do continente africano nos alunos e principalmente dos elementos difusores dessa nova abordagem da história da África, a escola, o livro didático e o professor, pois:

[...] se continuarmos a reproduzir essas leituras distorcidas, é muito pouco provável que o imaginário de nossas futuras gerações sobre a África sofra modificações significativas. Neste caso o papel das escolas e dos manuais escolares é de fundamental importância. Apesar de encontrarmos leituras e interpretações equilibradas e positivas acerca dos africanos, na legislação escolar, em experiências nas salas de aula e alguns livros didáticos, a tendência majoritária é a de reproduzir imagens dos africanos escravizados, brutalizados ou massacrados pela fome e conflitos, marcados sempre pela ausência de uma crítica ou reflexão histórica mais pontual. Se não mudarmos os textos explicativos acerca da História da África, tal quadro dificilmente poderá ser redesenhado, e, nosso espelho africano, continuará em pedaços (OLIVA, 2007, p. 18 apud RAMOS, 2013, p. 85).

Com a obrigatoriedade dos estudos africanistas no ensino básico brasileiro, uma gama de deficiências tem se apresentado, na docência, na gestão escolar e nos materiais de suporte didáticos, ao longo dos 12 anos da lei 10. 639/ 03, lei que inclui no currículo oficial das redes de ensino básico a obrigatoriedade da História da África e Cultura Afro-brasileira.

 Essas deficiências comumente findam em trabalhar a História da África de forma generalizada e distorcida, europeizada ou até mesmo ignorada durante a seleção de conteúdos a serem trabalhados em sala de aula.

Entretanto, por que aprofundar os estudos sobre a África no ensino básico? Geralmente, os conteúdos dos livros didáticos que fazem referencia a África estão inseridos nos temas tradicionais da História Geral e da História do Brasil: civilizações antigas: Egito; tráfico negreiro: escravidão; libertação; colonização e descolonização da África; Apartheid. Todos esses tópicos inseridos dentro de grandes temas/ conteúdos, num viés eurocêntrico, não permitindo a potencialidade e autonomia da África, estando sempre subjugada, reproduzindo estereótipos e distorções.

A revisão e ampliação dos conteúdos sobre a África culminam exatamente na formação de uma nova consciência social e histórica do aluno construindo uma nova identidade do Brasil.

Uma das várias finalidades da História é criar laços identitários para que um conjunto de pessoas se perceba enquanto nação, grupo social, étnico, cultural, gênero.Compreendendo aqui, a Identidade como um conceito não essencialista, mas um conceito estratégico e posicional. As identidades dos sujeitos se alteram ao longo do tempo, elas não são nunca unificadas eestão cada vez mais fragmentada e fraturadas e multiplamente construída ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação.

Sendo assim, as identidades são construídas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas, por meio da diferença, por meio da relação com o Outro, da relação daquilo que não é. E a construção da identidade nacional brasileira é no mínimo controversa.

O Brasil é um país como se sabe, miscigenado em todos os aspectos, cultural, religioso, social. Porém, nota-se que o pensamento embranquecedor, surgido nos fins do século XIX,a partir dos estudos Nina Rodrigues, médico baiano e o sociólogo Oliveira Viana, no início do século XX, acreditavam que o Brasil tinha “jeito” seatravés da mestiçagem, se “lavasse com as genes branca, superior, o sangue brasileiro” – daí o incentivo imigratório europeu patrocinado pelo governo até os anos 30 encerrada por Getúlio Vargas, ainda permanece na mentalidade do povo brasileiro, ressalvada as exceções.

No entanto, desconstruir, reconstruir laços, traços identitários também é uma das finalidades da História e ela tem as ferramentas necessárias para dar conta desse desafio que é reavaliar, rediscutir a maneira de como temos tratado a História do Brasil que por vezes converge com a História da África e seu legado para a formação do Brasil e do brasileiro. Não podemos negligenciar essas histórias que se confundem entre si.

Então, por onde começar a trabalhar a História da África sob um viés onde a África tem sua própria História?  Primeiramente devemos entender que o continente africano, assim como os demais possuem suas especificidades e singularidades culturais. E, é exatamente quando entramos neste campo, onde estamos sujeitos, devido a gama de interpretações que a história nos permite, hámá interpretações que podem propagar o preconceito e racismo, religioso ou cultural.

Quanto ao território, devido a sua grande extensão, encontramos variedades de clima, solo, vegetação, que desconstrói a África seca e selvagem. Além de ser habitada por mais de 2.000 povos com diferentes características físicas e modos de organização econômica e social.

A África como berço da humanidade, ponto de partida para o povoamento dos continentes, das primeiras civilizações e grandes reinos. Para entendermos a variedade de abordagens da História da África, longe dos conteúdos eurocêntricos e sob outra perspectiva Wedderburn lança a seguinte proposta:

A África deve ser estudada a partir de suas próprias estruturas, analisando-as em função das interrelações dentro do continente, mas também em relação ao mundo extra-africano. Somente assim se poderão descobri as múltiplas maneiras pelas quais aevolução dos povos africanos interferiu e/ou influenciaram eventos nas diversas sociedades do mundo e não somente o inverso, como se dá o caso até agora. Um enfoque diacrônico que privilegie tanto as relações intra-africanas como a interação do continente com o mundo exterior permitirá dar conta de fenômenos e de períodos que ainda se mantém na escuridão e são lacunas do conhecimento mundial (WEDDEBURN, 2005, p. 13).

Portanto, a intenção não é isolar a África como se tem feito, mas integrá-la a história do restante do mundo, o contrario disso, seria tornar a História da África a parte da História das outras civilizações, fazendo com que o aluno não consiga fazer as conexões necessárias para compreender a história total, pois somente uma periodização de longa duração, poderia refletir esses fatos históricos, que a ciência moderna legitima, e convir àquelas singularidades que são próprias da historiografia africana. Por suposto, há várias formas de abordagem para potencializar a inteligibilidade desses grandes períodos de uma história de tal extensão (WEDDERBURN, 2005, p.20). Pela proposta acima Carlos M. Wedderburn sugere um padrão de periodização da História da África que levaria em conta:

O processo de hominização; o povoamento do continente africano pela humanidade arcaica; os êxodos do continente e o subsequente povoamento do planeta; o processo de migração intra-africana, sedentarização e assentamento agrícola; o processo da construção dos primeiros Estados agro- burocráticos da história; as lutas e rivalidades políticas entre povos e nações africanas, os expansionismos intra-africanos desde a antiguidade núbio-egípcia até a contemporaneidade; as invasões do exterior; a conquista e colonização árabe da África setentrional; os tráficos negreiros intra-continentais e transoceânicos; os processos de desintegração de espaços sócio-históricos constituídos e, consequentemente, os processos de regressão social; a conquista e colonização europeia de todo o continente africano; as lutas de libertação e a descolonização da África (WEDDERBURN, 2005, p. 21).

Assim, abordando a história africana desta maneira, não se desconfiguraria a historicidade dos povos africanos, dando maior inteligibilidade para os estudos africanistas. Afinal, o papel do historiador é tornar o passado melhor, isso não quer dizer que os historiadores mudam o que aconteceu no passado, isso seria enganar as pessoas – apenas se inventaria uma história para agradar o povo. E isso, não é a finalidade do nosso trabalho.

Tornar o passado melhor significa dar um sentido que pode mudar as atitudes das pessoas na luta da busca ou afirmações de suas identidades. Isso é o que se chama de razão prática (RÜSEN: 2001). A exemplo do que pode se transformar num passado melhor é colocar o passado numa perspectiva histórica na qual as pessoas de diferentes culturas possam se comunicar uma com as outras de maneira a superar conflitos e tensões do etnocentrismo.

Portanto, entendo a validade dessas discussões das várias abordagens que temos para o aprimoramento do Ensino de História da África e cultura afro-brasileira, notamos que estamos num momento de reavaliação e renovação de nossas práticas de ensino buscando assim, um novo eixo de compreensão para revermos as narrativas nos livros didáticos que constituem a formação da identidade brasileira, agregada e influenciada pela cultura dos povos africanos devidamente reconhecidos e integrados à História do Brasil. É somente com a devida compreensão de sua história e cultura que iremos romper com os paradigmas de uma história da África submissa e de leitura preconceituosa.

Referências
BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília, 1998.
WEDDERBURN, Carlos Moore. Novas bases para o ensino de História da África no Brasil. Disponível em:
PEREIRA, Amauri Mendes. África: para abandonar estereótipos e distorções. Belo Horizonte: Nandyala, 2012.
RAMOS, Dernival Venâncio. Ensaiando rupturas: Professores de História escrevem sobre História da África. In: SILVA, Norma Lucia da; VIEIRA, Martha Victor (Orgs.). Ensino de História e formação continuada. Goiânia: Ed. PUC Goiás, 2013.
RÜSEN, Jörn. Razão Histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Unb, 2001
SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei 10.639/2003 como fruto da luta antirracista do Movimento Negro. In: BRASIL. MEC. SECAD. Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/2003. Brasília: Secad, 2005.
SCHÖPKE, Regina. Por uma Filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. São Paulo: Edusp, 2004.


8 comentários:

  1. Vicente Moreira da Silva11 de maio de 2015 às 17:50

    De fato, o ensino da História Africana é um desafio pedagógico a ser enfrentado na Educação Básica, pois os Livros didáticos de História carecem de uma re-avaliações e de novos sentidos na perspectiva crítica e sobretudo no enfrentamento dos estereótipos ainda arraigados nas memórias. Penso, no entanto, que a concepção da contribuição da cultura africana para a cultura brasileira tem de partir da desmistificação que o regime escravocrata teve na nossa História. Assim, a visão que ainda se tem é de um povo sem lei, sem voz, sem vez e sem condições dignas de vida, como vemos constantemente não tão somente nos manuais didáticos, como na mídia em geral. Há de se ter uma formação pedagógica consistente do professor, para que as "tentativas pedagógicas" de se trabalhar os preceitos da Lei 10.639 não produzam efeitos contraditórios. Nesse sentido, penso que a qualidade do trabalho para desmistificar os pré-conceitos infundados na formação cidadão dos alunos do Ensino Básico passa necessariamente na formação de nossos professores.

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  2. Nas escolas estaduais no Paraná, temos as Equipes Multidisciplinares que têm como prerrogativa articular os segmentos profissionais da educação, instâncias colegiadas e comunidade escolar. São espaços de debates, estratégias e de ações pedagógicas que fortaleçam a implementação da Lei nº 10.639/03 e da Lei nº 11.645/08 (http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=560).
    A professora considera que o trabalho destas equipes pode contribuir para romper com os paradigmas de uma história da África submissa e de leitura preconceituosa, como encontramos ainda em alguns materiais "didáticos"?

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  3. Rafael Moura Roberti12 de maio de 2015 às 08:31

    Gostaria de algumas considerações sobre a supervalorização da história africana no que tange sua importância para jogar por terra não só o eurocentrismo mas principalmente grande parte da historiografia pautada nesse etnocentrismo.

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    1. Vicente Moreira da Silva13 de maio de 2015 às 05:51

      Entendo que não deva haver em nenhum momento "supervalorizações" de se abordar as questões étnicas no currículo do Ensino Básico. O que deve ser revisto, melhor trabalhado e discutido em certa profundidade é em que sentidos houve a contribuição do povo africano, com sua cultura e tradições se deu para outros povos, desmistificando sentidos arraigados de preconceito e de valorização de outras culturas em detrimento a esta, entendendo que, para além das narrativas históricas, há outras narrativas não-contadas, não-trabalhadas, não-discutidas, não-valorizadas e carentes de atitudes pedagógicas mais profundas. Penso que a historiografia precisa se preocupar com estas questões.

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  4. Já não esta passando da hora de aceitar a nação africana como verdadeiros irmãos?
    Belarmina Ribeiro de Sousa

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  5. Diante das discussões e das várias abordagens que temos para o aprimoramento do Ensino de História da África e cultura afro-brasileira, neste momento de reavaliação e renovação de nossas práticas de ensino buscando com um novo eixo de compreensão para revermos as narrativas nos livros didáticos que constituem a formação da identidade brasileira, agregada e influenciada pela cultura dos povos africanos devidamente reconhecidos e integrados à História do Brasil.
    Sabemos que livros didáticos, do ensino brasileiro pouco aborda sobre a cultura afro-descendente, bem como o respeito ao negro, ainda é um processo que engatinha nas veredas do preconceito e da discriminação. O que fazer para agilizar este processo no ensino sobre a História da África conforme a Lei 10639/03 e Lei 11.645/08, que regulamentam a obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura. Afro-brasileira e Indígena em todos os níveis de ensino?

    Vanda Reino

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  6. De nada adianta a escola estudar sobre a cultura Africana se na sociedade existem muito preconceito e poucas atitudes são tomadas. Como justificar essa ideia?
    Sirlene Pio

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  7. O que vemos é que ao se ensinar a História africana em sala de aula é a intolerância no aspecto religioso de muitos alunos e de alguns colegas de trabalho. As pessoas ainda não conseguem aceitar que nenhuma raça é superior ou inferior a outra. Precisamos do apoio não só escolar, mas de uma sociedade inteira. Você concorda com este meu ponto de vista? Noeli.

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