ÁFRICA NA SALA DE AULA:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A INSERÇÃO DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E DA CULTURA
AFRO-BRASILEIRA NO CURRÍCULO ESCOLAR
Jessica Caroline de Oliveira
UCAM
Introdução
Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade. (Luís Gama)
Não é novidade a constante associação da figura dos
negros ao trabalho escravizado. Mais do que um processo histórico, a escravidão
introjetou o estigma da inferioridade, da desumanização e da descrença nas suas
competências de ser, estar e agir sobre suas vontades e necessidades. No Brasil,
alguns movimentos sociais, entre eles o Movimento Negro Unificado e o Teatro
Experimental do Negro, lutaram pelo respeito e valorização da história e da
cultura negra, afirmando que se existe preconceito, o mesmo só será combatido
com o conhecimento, se há discriminação, se faz necessário o desenvolvimento de
ações afirmativas que incluam aqueles que são discriminados.
Portanto, na busca pela sua inserção e pelo seu (re) conhecimento como
agentes sociais e sujeitos históricos, esta breve produção textual tem o
intuito de pensar o quanto é preciso e é possível orientar as bases de ensino
para uma educação de qualidade acerca da história e cultura africana e
afro-brasileira. Demonstrando assim, a forma como as lutas étnico-raciais foram
inseridas dentro do currículo escolar, bem como, a sua relevância para o ensino
de história através de orientações que contribuem para um ensino crítico, que fomenta o
entendimento, a argumentação e a desmistificação dos estereótipos que permeiam a nossa sociedade. Se estas lutas buscam por
mudanças, estas mudanças precisam de uma base que permita o olhar para novos
sentidos e significados, sendo essa base, a educação.
(RE) Pensando
sobre a proposta de Ensino de História da África
Enquanto o negro brasileiro não tiver acesso ao conhecimento da história de si próprio, a escravidão cultural se manterá no País. (João José Reis)
Estamos vivendo em um momento onde se acusa e
criminaliza o racismo, entretanto, acho pouco provável que essas alegações (soltas
e sem fundamentos) realmente resolvam o problema social que é o “racismo”.
Acredito que mesmo havendo punições para este crime, algo mais precisa ser
feito! Afinal, considero que uma pessoa não vai deixar de “ser” racista ou
preconceituosa em virtude de uma punição, todavia, uma pessoa pode deixar de “ter”
posturas e ideias estereotipadas e preconceituosas, a partir do momento que
possuir um conhecimento que lhe possibilite refletir, interpretar e orientar a
sua prática.
Partindo dessa ideia, o conhecimento é uma importante
ferramenta para fomentar o respeito, um respeito que não crie limites ou
descaracterize as diferenças socioculturais, permitindo, deste modo, entender e
romper com as impressões que possam inferiorizar ‘o outro’. Neste sentido, é
possível citar uma das medidas que os movimentos sociais em conjunto com o
Estado desenvolveram sobre as questões até aqui elencadas: as “Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, as quais revelam os
interesses, propostas e reivindicações nos aspectos legais (leis, decretos,
estatutos, entre outros), destinadas aos administradores e mantenedores do
sistema de ensino, cujo propósito baseia-se na orientação e diálogo com as
questões étnico-raciais, buscando assim, construir a partir de novos saberes
uma prática respaldada em conhecimento e cidadania. Entre os objetivos do
documento acima citado, podemos entender claramente que:
[...] procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e valorização de sua história, cultura, identidade. Trata, ele, de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe à divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial - descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada. É importante salientar que tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, 2004).
Os movimentos sociais recorreram aos mecanismos
ligados ao Estado, em virtude de uma premissa básica: o Artigo 113, o qual
afirma que “todos são iguais perante a lei”, cabendo ao Estado garantir e dar
condições para que essa igualdade seja adquirida por todos, indiferente à
gênero, nascimento, profissão, classe social, crença religiosa ou ideia
política. Além disso, foi este mesmo Estado que (num passado não muito
distante) criou a Lei de Branqueamento, Lei de Terras e operou na exclusão da
população negra no Brasil por um longo tempo, logo, é responsável por criar
medidas que reparem e incluam aqueles que foram deixados à margem da sociedade
e dos aparatos políticos, culturais e históricos. Sendo assim, as ações afirmativas
são políticas que visam dar condições, por meio de leis, ao reconhecimento, a
valorização e afirmação dos direitos dos negros no Brasil. Primeiramente, atuou
modificando as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, no qual,
buscou estimular novas práticas educativas e sugerir que a história e cultura
dos africanos e dos afrodescendentes fossem abordadas no currículo escolar.
Entretanto, o que se observou foi que esta temática era trabalhada em momentos
específicos, ressaltando o caráter de escravidão e dando continuidade as
representações estereotipadas. Notou-se
assim, que era necessária a criação de uma lei que obrigasse o ensino da
história e da cultura de um grupo que se apresenta como a maior densidade
demográfica no Brasil: a Lei 10.639/03, a qual busca reconhecer e desdobrar as
histórias das etnias negras, suas composições sociais, manifestações
religiosas, culturais, literárias e intelectuais que, por vezes, foram excluídas
ou maquiadas pela elite branca. Esta Lei torna obrigatório o ensino de conteúdos relacionados à história e
cultura afro-brasileira, buscando desenvolver a reflexão, (re) conhecimento e
valorização do legado africano à identidade nacional, através das
diferentes metodologias e disciplinas que compõe o currículo escolar.
Associada a esta Lei, realizou-se o Decreto n° 4.886
(20/11/2003) que promove a “Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial”,
desta maneira, a legislação assegura a pluralidade cultural e étnica no
processo educacional, com ênfase aos afro-brasileiros. Esse instrumento
jurídico compõe um passo importante para implantar os direitos humanos no cerne
dos planejamentos escolares. No âmbito pedagógico, pode-se considerar que
promove o ensino acerca do continente africano de forma diferenciada, habilitada
para as particularidades que lhe são inerentes, buscando compreendê-lo pelas
suas contribuições e como uma “prática educativa e da sociedade como um todo,
conectando-a com lutas antirracistas, de defesas das especificidades culturais
e das políticas de inclusão” (SERRANO e WALDMAN, 2007, p. 17). Observe os
fluxogramas abaixo, os quais demonstram a diferença do ensino de história antes
e depois das ações afirmativas:
Acima, o primeiro “passo” à direita, diz respeito a novos
referenciais teóricos e, neste sentido, novos olhares, métodos e teorias que se
deve utilizar para um ensino qualificado em relação as representações e
formação de saberes históricos acerca dos negros. Em relação a isso, Oliva (2006) afirma que esse ensino precisa deixar
de lado aqueles materiais que só reafirmam o pressuposto da inferioridade
africana, como também, deve pautar-se em produções atualizadas, buscando interessar e motivar a aprendizagem, apresentando elementos culturais,
históricos e sociais, permitindo assim, um sentimento de pertencimento e valorização. Serrano
e Waldman (2007) destacam que o desconhecimento
sobre a África nos leva a ignorar o quanto há de africano em nós, em nossos
gestos, em nossa maneira de ser e agir, por isso, faz-se preciso o estudo, a
reflexão e o debate acerca dos materiais que fazem referências às questões
afro, buscando aprender e, por conseguinte, ensinar conteúdos que abordem esta
temática com criticidade, livre de ‘achismos’, preconceitos e, sobretudo,
buscando ressaltar o quanto e como o Brasil é africanizado.
Para pensar essas lógicas em sala de
aula, o autor Moore (2011) apresenta que é preciso ter clareza do que se quer
ensinar e como ensinar, para tanto, destaca que deve-se abordar a temática
africana tendo como base epistemológica, metodológica e didáticas que
possibilitem conhecer o continente africano a partir dele mesmo. E se o Brasil
é africanizado, conhecendo a África estaremos conhecendo a nossas próprias
raízes e ancestralidade. Todavia, a escassez de obras sobre a temática,
quase inexistência de uma formação docente qualificada, má qualidade de ensino,
textos preconceituosos; as desculpas para justificar o desconhecimento sobre a
África eram e continuam sendo diversas. Sendo assim, de forma clara e objetiva, podemos apresentar
cinco pressupostos indicados por Moore (2011) para o ensino de História africana
e afro-brasileira, os quais permitem sair do mundo das ‘desculpas’ e assumir um
papel docente pautado no compromisso com o saber histórico, os quais ele denomina
como:
- Imaginário Preconceituoso sobre a África: Busca refletir sobre a premissa de novos conceitos que devem ser atribuídos e contextualizados acerca do continente africano, explicando as condições que levaram à construções de estereótipos (fome, conflitos, doenças, entre outros).· Mitos Raciológicos e Ideológicos sobre a África: Salienta o cuidado sobre os materiais didáticos e teóricos que se utilizará, buscando assim, não reproduzir visões eurocêntricas e raciológicas sobre o continente africano, como “África Branca e África Negra”, “povos primitivos”, “tribos”, “sem escrita”.
- Historicidade Africana: Sabendo que é no continente africano que se atribui a origem da humanidade, deve-se ter clareza que em virtude disso, o mesmo possui um ‘tempo’ alargado, dinâmicas, processos, relações e técnicas que só podem ser compreendidas dentro das suas lógicas e não precisam ser comparadas ou inferiorizadas à outros espaços e sociedades.
- Formação Docente Qualificada: Deve-se buscar uma formação e/ou aperfeiçoamento acadêmico sobre a temática africana, fomentando pesquisas, leituras de constantes atualizações historiográficas. Afinal, é preciso desfazer-se dos seus próprios preconceitos para promover a quebra de estereótipos alheios e promover um ensino de qualidade.
- Singularidades Africanas: Enfatiza o cuidado em não generalizar a África, podendo, neste caso, utilizar “África” num sentido plural, visto que, agrega múltiplas expressões étnicas, linguísticas, topográficas e formas organizacionais.
Por
fim, Moore (2011) afirma que ainda que haja um avanço significativo acerca dos
estudos sobre a África, há ao mesmo tempo, a lentidão da assimilação destes
pressupostos no meio acadêmico continua sendo um problema. Por isso, umas das
alternativas para romper com esse problema seria organizar oficinas de formação
docente para desconstruir estereótipos e desmistificar preconceitos sobre a
cultura e história da África. Não se deve negar as suas mazelas, nem mesmo
fazer uma exaltação ao continente africano, todavia, compreender o seu processo
histórico de forma crítica. Portanto, conhecer ‘o outro’ e a sua construção
histórica possibilita uma convivência com as diferenças fundamentais, afinal, a
história dos descentes de africanos não pertence somente à eles, mas ao mundo
como um todo, dada as conexões e trocas culturais que se fizeram ao longo do seu
processo histórico. Então, por que negar/excluir/apagar/inferiorizar uma
história que não está dissociada da nossa, e pelo contrário, dialoga em nossas
práticas cotidianas e identidades individuais e coletivas (?).
REFERÊNCIAS
Art. 113 da Constituição Federal de 34.
Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/10619582/artigo-113-da-constituicao-federal-de-16-de-julho-de-1934
Acesso em: 14 Jun. 2014.
BRASIL.
Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial
da União. Brasília, DF, 10 jan. 2003.
BRASIL. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:
nº 9394/96. Brasília: 1996.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto nº 4.886 de 20 de
novembro de 2003. Institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial
- PNPIR e dá outras providências.
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Disponível em:
http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf
Acesso em: 14 Jun. 2014.
MOORE, C. A África que incomoda:
sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro. Belo
Horizonte: Nandyala, 2011.
OLIVA,
A. R. A história africana nos cursos de formação de professores. Panoramas,
perspectivas e experiências. Estudos Afro-Asiáticos.
Ano 28, n° 1/2/3, Jan-Dez 2006, pp. 187-220.
SERRANO,
C.; WALDMAN, M. Memória D’África: a
temática africana em sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007.
Olá Jessica Caroline de Oliveira!
ResponderExcluirAdorei seu trabalho e gostaria de saber se há algum site que disponibiliza material didático adequado para o ensino da História da África no ensino fundamental e médio?
Cristiana Dionizio Teixeira
Olá, gostaria de saber se há uma historiografia que pode ser mais profunda sobre o tema "África". Até agora, li muito sobre a defesa de se estudar África (o que é válido e necessário) mas como, digamos, eu já estou convencido disso, gostaria de ler algo mais substancial
ResponderExcluirPrimeiramente, quero parabenizá-la pela qualidade do seu texto e pelas abordagens significativas que o traduzem. Aproveito para destacar alguns pontos, os quais julgo pertinentes e importantes: primeiramente, há uma singularidade em se considerar que realmente é preciso conhecer primeiramente a África para consequentemente, conhecermos o nosso país, sobretudo no que concerne às contribuições à cultura brasileira. Em segundo lugar, destaco que as ações afirmativas em torno das "desconstruções ideológicas e históricas do povo afrodescendentes perpassa a questão das cotas, que deve ser vista (na minha opinião), como uma ação afirmativa sim, de inclusão, valorização e reconhecimento histórico da luta do povo afrodescendente, mas não como uma forma de reparação. Sob a perspectiva da reparação é que as opiniões contraditórias caminham para a não-superação do preconceito. Concorda? Em terceiro lugar, sobre o termo usado pelo autor João José Reis, é preciso lutar veentemente contra a "escravidão cultural" ainda presentes na memória de nossos alunos e até de professores, sejam da Educação Básica ou não. E por fim, não menos importante, é preciso pensar que há a necessidade do cumprimento efetivo da lei sancionada (Lei 10.639), que trata sobre a inserção no currículo escolar das questões relativas à cultura afrodescendente e africana, mas deve ser pensado que atitudes preconceituosas, sejam na escola ou não, devem ser punidas. Lógico que a punição, por si só, não produz a mudança (como é destacado no texto). No entanto deve haver a relação entre a formação cidadã do aluno (educação) e a punição, no sentido de também desmitificar que as leis no nosso país ficam no papel e não são efetivamente cumpridas.
ResponderExcluirGrande abraço!
Vicente Moreira da Silva
Iretama
Boa noite Jessica,
ResponderExcluirPrimeiramente gostaria de parabenizá-la pelo texto e a sua relevância frente os diversos questionamentos e dificuldades apresentas ao docente de História ao lecionar esse tema, tão importante e imprescindível para não só nos conhecermos historicamente, mas como forma de incluir parcelas significativas da sociedade brasileira. Como professora de História me deparo com dificuldades não só em encontrar materiais mais didáticos, para ofertar aos alunos, como também fontes que vão além dos contatos entre Portugal, regiões africanas e Brasil, com foco no passado distante e aspectos, notadamente, culturais. Será que a História da África não deveria englobar também as relações existentes entre o Brasil e os países africanos falantes de português? Já que não só o governo, como empresas, universidades do Brasil, apresentam uma aproximação intensa com esses países (vale lembrar a proximidade (financiamento) noticiada entre a escola de Samba Beija –Flor do RJ e a Guiné Bissau). Essas “pontes” entre passado e presente não contribuiriam para quebrar a ideia de África antiga e distante?
Obrigada. Emilene Ceará Barboza – professora de História da Escola Técnica de Campinas – SP.
Acredito que a temática africana deveria ser introduzida no currículo educacional desde os anos inicias da educação, só assim formaremos indivíduos com mais conhecimentos da sua origem. Podemos esperar novas propostas curriculares?
ResponderExcluirLucimar Gomes da Silva
Por que meramente vimos, medico, advogado e outras autoridades de cor negra, isso não é uma grande desvalorização do Negro na sociedade em que vivemos?
ResponderExcluirBelarmina Ribeiro de Sousa
Se o racismo é tão grande contra o Negro então porque os brancos precisa deles se são negro?
ResponderExcluirMera Lucia Braga