ELECTRA, A VINGADORA (1962): TEATRO, CINEMA, HISTÓRIA E OS INSONDÁVEIS OLHOS
DE IRENE PAPAS
UPE
Uma das grandes cenas da peça Electra, de
Eurípides (escrita na primeira metade da década de 410 a.C.) é o confronto
final entre duas poderosas mulheres: a personagem-título, cuja obsessão em
vingar o assassinato do pai Agamênon, herói da guerra de Troia, sobreviveu
décadas sem mácula, e Clitemnestra, sua mãe, rainha de Micenas, mentora do
homicídio, e que uma vez morta a vítima, casou-se com o autor do feito, o vil
Egisto, a quem entregou o trono. Para ser preservado do morticínio, o único
herdeiro masculino do monarca, o menino Orestes, foi rapidamente levado para
destino incerto, enquanto Electra permaneceu no palácio, memória incômoda dos
terríveis acontecimentos.
A jovem é dada em casamento para um camponês
– e sua prole, desta feita, não terá direito algum de reclamar herança real –
mas o casal de homicidas jamais descansou, pois com o paradeiro de Orestes incerto,
um dia ele poderia emergir das sombras do desconhecido para clamar a devida
vingança à memória paterna – algo que de fato ocorre, e o sangue de Egisto tinge
a espada do jovem príncipe. Faltava, porém, o castigo à mentora, e coube a
Electra armar o bem-sucedido estratagema que atraiu a mãe-assassina à cabana
onde vivia; o encontro entre as duas antagonistas é marcado por contundente
troca de acusações, e Clitemnestra justifica ousadamente o impulso que a moveu:
(...) Na fala da mulher de má fama/ há quem veja um travo de amargor,/ o que não é meu caso. Sabedora/ do que fiz, se o que fiz te parecer/ nefasto, odeia-me; se não teu ódio/ é nulo (...) Quando Agamêmnon levou ao porto de Áulis Ifigênia,/ foi para desposá-la com Aquiles, mas lhe segou o rosto lindo lá,/ no altar. Tivesse sido pelo bem/ da pólis, se o solar corresse risco,/ fosse para salvar os filhos, ainda/ faria sentido alguém morrer por muitos./ Mas foi pela consorte de um sem fibra/ que a imolou, foi por Helena, a lúgubre![EURÍPIDES. Electra, p.120.]
Após a queda, o coice: além de sacrificar a
própria filha em prol de causa vã, Agamêmnon, narra a mentora, ainda trouxe à
casa outra mulher como sua concubina (ninguém menos que a desditada Cassandra,
princesa de Troia e profetisa de atrozes futuros), dupla ofensa à qual foi
incapaz de relevar.
Electra ouve as palavras da mãe. O relato lhe
encrespa a juba, mas antes de revidar, pergunta: posso levar a sério o que
disseste/ sobre eu poder falar de peito aberto?[idem, p.121] A resposta é
positiva, e ela ataca:
Sei mais do que ninguém quem és. Sequer/ cogitavam de eliminar tua filha/ nem bem o rei partiu, e as tranças louras/ penteavas, admirando-se no espelho./ A esposa que esmera em produzir-se,/ quando o homem parte, traça um mau perfil. (...) Que outra grega/ se extasiava ao êxito dos troicos,/ ensombrecia o cenho se recuavam/ torcendo contra a volta de Agamêmnon? (...) Se meu pai, como dizes, trucidou/ tua filha, onde erramos eu e Orestes?/ Por que, depois de assassiná-lo, não/ nos deste o que era nosso, o paço, em vez/ de comprar um amante com dinheiro/ alheio? [idem]
A acre troca de acusações não cessa...
“Nasceste para amar teu pai. A vida/ é assim: há quem prefira o sexo másculo/ e
há quem ame a mãe mais do que o pai”, acusa Clitemnestra, ao que Electra
redargue: Tardias lágrimas de crocodilo.../ meu pai não vive mais. Por que não
trazes/ ao lar teu filho, um erramundo? [idem, p.123] Esta angustiante
altercação nada mais é que a sala de visitas para o ponto máximo da tragédia: a
morte de rainha pelas mãos dos próprios filhos.
Ler a tragédia é fundamental, mas vê-la sendo
representada é experiência única, de vivência cultural e de exercício do olhar
histórico, pois somente a encenação nos faz capazes de compreendê-la em sua
completude. Logo, partindo desta perspectiva, encontramos no cinema aliado
valioso, oportunidade para a análise visual do teatro grego, e neste
particular, poucas obras são tão fortuitas quanto Electra, a vingadora [Ilektra/Ηλέκτρα. Grécia, 1962] do
cineasta Mihalis Kakogiannis (1922-2011).*
*Almejando uma carreira internacional, este diretor adotou um nome artístico mais próximo do inglês: Michael Cacoyannis. Como tal, dirigiu sua película mais conhecida internacionalmente: Zorba, o grego (1966), pelo qual foi agraciado com várias indicações a prêmios importantes, como o Oscar (melhor filme, diretor e roteiro adaptado), o Bafta e o Globo de Ouro.
Neste filme, a figura imodesta de
Clitemnestra ganha vida através da ateniense Aleka Katselli, de porte altivo e
olhar diamantino, contraponto à sublime Electra criada pela atriz Irene Papas,
“sóbria como o silêncio, envolta na mais
autêntica revolta (...) maior que a vida, os sentimentos e nossas
fragilidades”, nas palavras do cineasta Rodrigo Grota [2012].
A arrogância de Clitemnestra é recriada na
película, e se Eurípides escreveu que se fazia acompanhar por escravas
bárbaras, nobres troianas aprisionadas pelo finado marido, no filme a rainha ostenta
aparato semelhante ao delas: maquiagem pesada, cintilante, contraste com a
simplicidade esperada de uma helena digna; pesados brincos pendentes, coroa
raiada, amplo colar, que envolve todo o pescoço e desce ao colo – embora o
filme seja em preto e branco, a impressão áurea deixada nas retinas não deixa dúvidas
quanto ao material de que são feitos.
Veste-se, ela própria diz, em rico vestido,
tão fino que pede à própria filha que evite tocá-lo ao descer da carruagem,
ornamentado com riquíssima borda e listras ondulantes. A origem bárbara de suas
vestes e adereços evoca a barbaridade de sua vida infame.
O esplendor real salienta ainda mais a
indigência da filha: Electra, mulher de um pobre agricultor, veste roupas grosseiras,
escuras, não usa maquiagem, braceletes brincos ou colares, e seus cabelos,
contrariamente aos da mãe, não são cuidadosamente arrumados e cobertos pelo
véu, mas tosados bem curtos, corte feito de próprio punho ainda no início do
filme, como forma de luto não apenas pela memória aviltada do seu pai, mas
também pelo casamento indigno ao qual fora designada.
Os olhos de Irene Papas, salientados pela
sombra negra, são de abissal profundidade, e cada expressão revela novos
aspectos da tragédia: por vezes vislumbram, vazios, o horizonte, como que
prenunciando os horrores que estão por vir; noutras são desafiadores,
conscientes da obrigação moral que deve ser cumprida, a vingança, e empurram o
jovem e titubeante Orestes ao encontro com o destino. Por fim, diante da
monstruosidade do assassinato da mãe que a tinha gerado, exprimem dor e
desconsolo irremediáveis.
O encontro dessas duas mulheres incendeia a tela;
altiva Clitemnestra diz à filha:
Falar-te-ei com serenidade
E quando houver dito a verdade frente aos aqui presentes
Serás a primeira a admiti-la.
Nos momentos seguintes, o roteiro de Kakogiannis
repete os argumentos criados por Eurípides mais de dois milênios antes; da
mesma forma, ao fim do discurso, repete a reação do coro, representado no filme
por um grupo de mulheres gregas vestidas em negras vestes, voz inclemente do
povo:
Tem razão, mas seus motivos não são honestos
Uma mulher sensata deve perdoar o seu marido, essa é a verdade.
Kakogiannis, como Eurípides, não perdoou
Clitemnestra, e Electra expõe os pecadilhos do seu passado, acusa-a de vaidade,
dissimulação, prevaricação, confronta sua falta de misericórdia em relação a si
mesma e ao irmão, e ainda que por vezes fraqueje em seus propósitos, não deixa
de atrair a mãe ao casebre, onde Orestes se encarregou de por-lhe termo à vida.
A obra cinematográfica ilumina a literária e
salienta as emoções descritas, e ao fazê-lo, traz para junto do mundo
contemporâneo a Antiguidade, pretensamente distante e carente de sentido, sendo,
pois, riquíssima oportunidade para a reflexão do profissional de História. É
nessa perspectiva que exploraremos o filme Electra,
a Vingadora.
Como bem nos ensina Maria Regina Cândido
(2009), três realidades mais significativas vem estimulando os estudos de
História Antiga no país, a saber, a internet, os núcleos universitários e uma
considerável produção cinematográfica; no conjunto, “tais fatores tornaram
visíveis os setores de História Antiga e Medieval assim como despertaram os
interesses dos discentes da graduação, possibilitando a pesquisa e o ensino de
sociedades antigas no Brasil” [Cândido, 2009, p.281-82]. Estas três instâncias,
longe de navegarem em paralelo, se entrelaçam a alimentam: a internet tornou
possível o acesso a filmes e legendas amiúde inacessíveis em outros momentos, e
esse rico acervo vem sendo apropriado pelos investigadores da História, ampliando
o campo de pesquisa sobre Antiguidade.
Nem sempre foi assim: tão recentemente quanto
os anos 2000, orientávamos um grupo de graduandos numa apresentação da ANPUH
regional cuja comunicação versava sobre utilizações do cinema no ensino de
história, e um dos presentes regalou a audiência com um comentário espirituoso
(ao menos para os próprios ouvidos): a única forma que concebo de utilizar
filmes com meus alunos é levando-os ao cinema com bastante pipoca. Tal
impostura, por extemporânea que fosse, ecoava profunda rejeição com que nossa
disciplina recebeu a nova forma de arte nas primeiras décadas de sua vida. De
fato, enquanto outros conhecimentos, como as Ciências Sociais e a Filosofia*,
exploravam suas possibilidades, para as mais importantes correntes do
pensamento historiográfico da época as películas não constituíam objetos
válidos para pesquisa, uma vez que nem se caracterizavam como fontes escritas e
oficiais e tampouco revelavam informações de cunho econômico.
*Tardia quando comparada às demais Ciências Humanas. Décadas antes de Ferro, Walter Benjamin já refletia sobre a importância do cinema, e em seu ensaio ‘A obra de arte na época de sua reprodutiilidade técnica’, datado dos anos 1930, afirmava: “as tendências evolutivas da arte nas atuais condições é tão evidente na superestrutura quanto na economia. Por isso, seria equívoco subestimar o valor destas teses para a luta de classes (...) utilizáveis na formulação das exigências revolucionárias na política da arte”. [Apud Lima, 1982, p. 210].
Desta feita, conquanto amplamente difundidos,
os filmes eram considerados “diversão de quermesse para indivíduos iletrados”
[Ferro, 1992, p.29] e produção anônima, pois segundo “os juristas, as pessoas
instruídas, a sociedade dirigente e o Estado, aquilo que não é escrito – a
imagem – não tem identidade: como os historiadores poderiam ser referir a ela e
mesmo citá-la?” [idem]. Com a espada de Tântalo da verdade* pendendo sobre a
cabeça, a historiografia resistia à sétima arte por ser uma inovação técnica recente,
declaradamente ficcional, ideológica e, acima de tudo, academicamente suspeita,
que distorcia o passado e escamoteava a veracidade dos fatos.
*“Estudantes de todas as áreas tem que tomar decisões sobre como responder ao desafio da dúvida, mas, para os historiadores, o dilema é particularmente grave. Seu ethos profissional sempre foi fundamentado em algumas famosas palavras de Cícero: Quem não sabe que a primeira lei da história é a de que o historiador deve ousar dizer apenas a verdade? E que a segunda lei é a de ter a audácia para dizer a verdade em sua totalidade? E que sua obra não deve levantar suspeitas de parcialidade?” [Fernández-Armesto, 2000, p. 220, 221].
Mais do que acesso à fonte, foi necessário
modificar o instrumental teórico e metodológico da disciplina, e o marco inicial
dessa transformação foi o artigo O filme:
uma contra-análise da sociedade? de Marc Ferro, que compunha o volume História: Novos Objetos, organizado por
Jacques Le Goff e Pierre Nora em 1974, no qual o autor discorria sobre as
várias potencialidades e técnicas necessárias à abordagem das obras fílmicas, e
afirmava que embora os filmes se constituíssem em jogos de câmera e roteiros amiúde
tendenciosos ou ufanistas, era precisamente através destes elementos que se poderia
estudar um determinado movimento, cultura e sociedade – assim sendo, valiam
muito mais pelo que continham intrinsecamente que pelo que exibiam abertamente,
abordagem seguida por Cristiane Nova, para quem limitar-se ao mise-em-scène – a autenticidade do
figurino ou do cenário – não era suficiente, mas antes indagar os porquês das
escolhas narrativas:
A primeira questão a ser levantada diz
respeito exatamente à relação passado-presente contida no filme. Qualquer
representação do passado existente no filme está intimamente relacionada com o
período em que este foi produzido. Por exemplo, a escolha de um tema histórico
e a forma como ele é representado em uma película são sempre ditadas por
influências do presente. [idem]
Ambas as visões convergem no seguinte
aspecto: assistir um filme é conhecer a sociedade que o produziu; se se trata
de um drama contemporâneo ou de um capa-e-espada é incidental, pois o que
aparece na tela é uma narrativa disfarçada daquela contemporaneidade.
Perspectiva um tanto diversa – e que nos
interessa diretamente nesse texto – é adotada por Maria Wyke em seu livro Projecting the past:
Ancient Rome, Cinema and History, no qual deixa bem clara a “profunda função” que o cinema possui na
constituição de uma consciência histórica, uma visão de estudos clássicos que objetiva
não somente revelar a Antiguidade, e sim:
mais e mais em expor, ao invés de ocultar, os interesses ideológicos locais – as várias misoginias, etnocentrismos, elitismos e imperialismos – tanto da Antiguidade quanto das suas apropriações subseqüentes [Wyke, 1997, p.7]
Longe de compor uma narrativa de feitos e
realidades dadas e acabadas, o estudo da Antiguidade, reflexo da nossa
compreensão contemporânea do passado, busca o contrapelo, os conflitos, e não
se exime em “definir e debater nossa relação com aquele mundo”, contexto que
converte o cinema em local privilegiado para a reflexão histórica.
Filmes, os mais fidedignos como os nem tanto,
ao recriar o passado são sempre agentes de construção de cultura histórica, fato
claramente perceptível nas produções dos circuitos comerciais, geralmente dotadas
de elencos estelares, pesados investimentos econômicos, ostensiva
reconstituição de época e efeitos visuais impressionantes. Poderíamos citar
vários exemplos desse grupo, majoritariamente norte-americano, do recentíssimo Êxodo: Deuses
e Reis [(Exodus: Gods and Kings. Ridley Scott, 2014) que retomou os fiapos
da história de Moisés em prol de um espetáculo agressivo] ao pouco mais recuado,
embora mais próximo ao nosso tema, Troia [(Troy, Wolfgang Petersen, 2004) cuja representação urbana de Ílion
reproduz impressões das megalópoles modernas] – ambos, não obstante imprecisões
claras (muitas das quais propositais), possuem a capacidade de tornar verídico o
inverossímil, e ao fazê-lo, dizem muito da concepção de História contemporânea
e dos olhares lançados à Antiguidade [“filmes
históricos, mesmo quando sabemos que são representações fantasiosas ou
ideológicas, afetam a maneira como vemos o passado". ROSENSTONE, 2010, p.
18.].
A importância do filme para a historiografia
é levada à última potência pelo historiador norte-americano Robert Rosenstone
em seu livro A história nos filmes,
os filmes na história: amplamente influenciado pelo escritor Hayden White,
equipara o filme à produção historiográfica, e o diretor ao historiador,
pois tanto a película quanto os livros não só elaboram e rearranjam os
vestígios legados pelo passado* quanto, quando necessário, se permitem inventar
fatos para compor suas narrativas.
*'Podemos realmente representar o passado, de maneira factual ou ficcional, como ele era? Ou sempre apresentamos apenas alguma versão de como ele possivelmente era ou poderia ter sido? E, em nossas representações, não alteramos inevitavelmente o passado, fazendo-o perder parte do seu sentido pra si mesmo, ou seja, para os seus atores históricos e, ao mesmo tempo, impomos outros significados (os nossos significados) aos acontecimentos e momentos que talvez sejam muito difíceis de reconhecer para aqueles que os vivenciaram? (...) sempre violamos o passado, mesmo quando tentamos, a despeito da mídia usada, preservar a sua memória (...) esta violação é inevitável, faz parte do preço de nossas tentativas de entender a palavra extinta dos nossos ancestrais’. [idem, p.199].
E
ainda que não abracemos tal proposição, não nos parece possível negar que:
(...) as ricas imagens e metáforas visuais que nos fornecem contribuem para que pensarmos historicamente’ (...) o objetivo não é fornecer verdades literais acerca do passado (como se a nossa história escrita pudesse fazê-lo), mas verdades metafóricas que funcionem, em grande medida, como uma espécie de comentário, e desafio, em relação ao discurso histórico tradicional. [idem, p.24]
Nestas construções metafóricas, há que se
perguntar: qual o interesse do retorno ao passado? Será, aquele período, mera
“ambientação exótica” para o romance ou aventura, ou interação “com aquele
discurso, fazendo e tentando responder perguntas que, há muito tempo, circundam
um determinado tópico”? [idem, p.74]. No primeiro grupo, situamos boa parte das
grandes produções hollywoodianas, sendo o já citado Êxodo: Deuses e Reis o exemplo mais recente dessa escola: não apenas o
Antigo Egito é um mero pretexto para cento e cinquenta minutos de violência e
velocidade, como, ainda pior, a própria tessitura da narrativa exsuda racismo e
preconceito. No segundo grupo, podemos situar o igualmente recente [Noah. Darren Aronofsky, 2014]: grande produção, dispendiosa como as demais de seu
gênero, mas que traz em seu bojo preocupações filosóficas infinitamente mais
abrangentes que o épico sobre Moisés, e que nos confronta não apenas com
questões de ordem prática que a história do dilúvio colocava (como poucas
pessoas poderiam tomar conta de tantos animais? Simples, eles dormiram), mas
indagações sobre a vida, o destino, a relação entre o humano e o divino, a
ética das ações humanas e o papel da religião estabelecida.
Fora do circuito do cinemão norte-americano,
Robert Rosenstone situa um outro gênero de recriação histórica, à qual denomina
‘drama inovador’, as “obras criadas para contestar as narrativas perfeitas de
heróis e vítimas que constituem o longa-metragem comercial” [Rosenstone, 2010,
p.81], e é precisamente neste universo que situamos as recriações do passado
empreendidas por Mihalis Kakogiannis, um cipriota de origem grega, cuja obra se
insere no movimento pan-helênico de meados do século XX e voltou-se para temas
próprios da realidade da Grécia: dramas contemporâneos (Stella, 1955, Eroica, 1960),
uma visão quase folclórica das raízes mais profundas daquele povo (Zorba, o grego, 1964), e três produções
que retornavam à Hélade – Electra, a
vingadora; As troianas [The Trojan Women, 1964] e
Ifigênia [Ifigeneia/Ιφιγένεια, 1977] – não como objeto fetichista
de busca pelo momento áureo de sua gente, mas antes como complexas construções
históricas, elaboradas tanto através de elementos visuais – figurino, maquiagem
e cenário – como narrativos.
Kakogiannis percebeu que as verdades e
inquietações expressas por Eurípides dois milênios antes continuavam válidas em
pleno século XX, e sua trilogia buscou nas tragédias a força das mulheres
contra exercícios de poder tirânico e violência, algo particularmente
perceptível n’As Troianas, filme no qual uma plêiade de fortíssimas personagens
femininas orbita a volta de Hécuba, rainha vencida da arrasada cidade, e
resistem às supremas indignidades impostas pelos vitoriosos.
Uma intérprete, em especial, destacou-se
nesse universo de diálogo trágico-fílmico: Irene Papas, amiga e musa
inspiradora do diretor, presente em suas maiores produções, e intérprete de
algumas das personagens mais marcantes da tragédia clássica*: Electra, Helena
e, finalmente, Clitemnestra.
*Além das três colaborações com Kakogiannis, Irene Papas encarnou outras célebres personagens gregas sob a batuta de outros diretores: o papel título em Antígona (Antigoni/Αντιγόνη), de Yorgos Javellas (1961), e Penélope, na minissérie italiana L’Odissea, de 1968.
Quem senão esta grega de Corinto poderia
representá-las com tanta propriedade? Quem se disporia a, como fez n’As
Troianas, despir-se defronte às enfurecidas mulheres troianas, e banhar-se como
um cavalo premiado, objeto da cobiça dos helenos vencedores? Que outro olhar,
tão belo quanto insondável, poderia exprimir ódio e pesar, desespero e
determinação, com um simples arquear de grossas sobrancelhas? Suas performances,
transbordantes de existencialismo, ligaram as angústias do V século AEC à
contemporaneidade do século XX.
O roteiro de ‘Electra, a vingadora’, assim como a
direção, foi trabalho de adaptação do próprio Kakogiannis, e para realizá-lo
entabulou interessante diálogo com o teatrólogo, pois qualquer um que vá
diretamente à tragédia perceberá que houve mudanças; preferimos não usar o
termo “atualização”, pois deixaria implícito que o texto euripidiano seria, de
um modo ou de outro, ultrapassado. Preferimos, pois, a transcriação, o ato de
co-autoria que o cineasta empreendeu para transpor a distância temporal que o
separava do original e traduzi-lo a uma outra mídia – não pretendia teatro
filmado, e sim uma tragédia fílmica [“acercar las tragedias antiguas al público actual
mediante un realismo que podríamos denominar trágico”. GARCÍA, s/d.], algo totalmente diferente. E foi
bem sucedido.
Eurípides dá início
à sua obra com um monólogo declamado pelo camponês que acolheu Electra; Kakogiannis,
por sua vez, conjurou um prólogo próprio, no qual apresenta à audiência
(certamente menos afeita às histórias que o público ateniense) todas as
informações necessárias para a compreensão da narrativa: vemos o nobre
Agamêmnon chegando à sua capital, Micenas, e a alegria com que é recebido pelo
povo, flagrante contraste com a frieza com a qual Clitemnestra mira o
horizonte. Ao chegar ao palácio, os únicos abraços amigos que recebe são dos
filhos, verdadeiramente alegres com o retorno do pai; sua espada, dá ao menino,
penhor de sua futura ascensão ao trono, e desarmado, segue para a banheira,
onde é preso por uma rede e assassinado, embora não sem luta, pela mulher e o amante
[“sucesión frenética de planos que provoca vértigo, y, de esta forma, con
su sello personal enriquece el texto de Eurípides empleando sus propios
recursos artísticos para aumentar la tensión dramática”. Idem.].
A menina Electra pressente o ocorrido e desmaia, enquanto um velho servo leva
para longe o pequeno Orestes, e enquanto o horror inicial se desenrola,
pássaros negros voam no céu.
Outro elemento dissonante entre a peça e o
filme é a presença do religioso; seria impensável a um autor da Antiguidade a
ausência de tais elementos, e Eurípides não é exceção, algo que fica
particularmente claro ao fim da peça, quando se utiliza do recurso do deus ex machina (aparição fortuita de
divindade para solucionar questões em aberto da narrativa) para trazer o que
poderíamos chamar de final feliz à sua obra, quando os deuses gêmeos Cástor e
Pólux instruem os personagens: culpado pela morte da mãe, Orestes não pode
assumir sua herança real, mas dirige-se à Atenas onde clamará por misericórdia
junto ao templo, enquanto sua irmã casa-se com seu fiel acompanhante, Pílades,
que se torna rei de Micenas.
Kakogiannis
apresenta uma percepção diversa da tragédia: há, indubitavelmente, a mão pesada
do destino, que impulsiona as vontades tal e qual um manipulador de marionetes,
mas toda a ação se passa no plano horizontal, do ser humano e dos deveres que
sente em relação a si e aos demais, mulheres e homens visceralmente vivos,
repletos de ódio e angústia individuais. Por mais que o túmulo raso e sem
identificação de Agamêmnon fosse um crime de impiedade (desrespeito aos mortos),
é, antes de mais nada, causa de sofrimento para a filha, impossibilitada de demonstrar
sua devoção e seu amor ao falecido como sentia necessário. De forma semelhante,
a obsessão pelo reencontro com o irmão e a vingança final alimenta Electra ao
longo de todo o filme, não como o empuxe transcendental divino, e sim como
dever filial e como rancor pessoal [“Tanto o ódio quanto a violência fazem com
que seus agentes atuem movidos pela emoção e, por vezes, busquem realizar a
vingança com suas próprias mãos. Para Aristóteles, o tempo pode amenizar e até
curar a raiva, porém, o ódio é um sentimento incurável e tem por princípio
prejudicar, vingar e destruir o oponente”. CÂNDIDO, 2009, p. 205.],
especialmente em direção a Egisto, misturado com o desamparo de odiar/amar a
própria mãe – o ódio floresce na ausência materna, mas no encontro final (e
principalmente após o crime), o amor transparece claramente e alimenta a culpa,
aumentando ainda mais o conflito interno vivido pela personagem.*
*É mister citar, ainda que brevemente, a discussão que Manfredo Araújo de Oliveira (1995, p. 107) empreende sobre o sentido do ser humano: “O homem se distingue de tudo mais por uma fundamental abertura, seu ser ainda não está aí, a plenitude de seu existir não está assegurada, ele é fundamentalmente ‘intencionalidade’, ou seja, orientação para uma realização para qual ele está a caminho, mas que, em princípio, pode não vir. O homem é, assim, risco: um ser a caminho de si mesmo (...) um ser que tem que conquistar seu ser”. Electra possui essa abertura, por mais que esteja aguilhoada pelo destino; o seu final não é inevitável, mas escolhido: ela optou pelo horror final do matricídio.
Nessa perspectiva, o final proposto por
Eurípides não poderia existir no filme, pois os autores trilharam caminhos
diversos na construção de suas narrativas. Após a morte de Clitemnestra,
Electra remói a culpa mortal do matricídio, mas solitária do que nunca, pois o
homem que a acolhera e as mulheres que a cercaram e protegeram ao longo da
exibição agora a rejeitam, sem tolerar o crime horrível que cometera. Quanto a
Orestes, vaga perdido pelas montanhas, e seu paradeiro nos é desconhecido –
apenas o olhar vazio de sua irmã parece segui-lo, mas ambos desaparecem em fade out, antes mesmo do fim da projeção
[“En sus rostros vemos miedo, vergüenza, incertidumbre y una tristeza
infinita, como si alguien les hubiera arrebatado el alma. No hay por tanto justificación posible para su acto de venganza”. GARCÍA,
s/d.].
Esta solidão final dos irmãos é
significativa, pois como ensina Neyde Theml,
(...) o cidadão [ateniense] convivia com um conjunto de regras não-escritas, reconhecidas por todos, ligadas à tradição, à moral e à religião. Essas regras de conduta estabeleciam uma relação social de honra, cuja sanção se materializava na vergonha e na exclusão social. Honra (timé) e vergonha (aidós/ aischós) regulavam, de certa forma, o comportamento coletivo (...) definiam o que era bem social, fortalecendo os compromissos coletivos e a pertença à mesma sociedade. (...) A tradição expressava uma série de valores, de hábitos, de normas morais e religiosas que se ligavam diretamente à consciência do homem, o qual controlava seu comportamento e se autopunia pelo receio do constrangimento do seu grupo, por medo da perda do seu status ou do seu lugar na sociedade, ou mesmo, da sua morte social. Essas normas referiam-se à organização das relações quotidianas e aos valores da sociedade, tais como, por exemplo: o respeito e proteção aos pais; sepultar os mortos; permitir o inimigo proceder os seus ritos funerários; ser moderado em suas ações, ou seja, ter o controle de si (sophrosýne) (...) Quaisquer atos contrários a esses princípios eram considerados crimes (adikéo significa: ser injusto, não ter razão, prejudicar, molestar) e, neste sentido, era uma violência, à medida que produzia um dato novo que modificava a rotina da sociedade. [Theml, 2009, p.176-77]
Num momento como este percebemos como o filme
é um espaço notável da análise histórica: o autor de Electra, a vingadora não seguiu à risca as palavras de Eurípides –
e nem pretendeu fazê-lo; todavia, ao arranjar o roteiro adaptado às
interpretações dos atores, ao cenário grego, à música, etc., construiu uma
metáfora visual extremamente válida para a compreensão da Antiguidade e de sua
recepção no mundo contemporâneo.
Os valores sociais presentes na citação estão
presentes no filme: vingar o pai, mais do que um direito, era um dever dos
irmãos, e ambos se agarraram a ele ao longo da vida; na primeira oportunidade,
Orestes mata em duelo o assassino Egisto, e o ato é recebido com festa, tamanha
que pode ser ouvida através dos vales, e tochas acesas tornam em dia a noite –
a honra familiar estava limpa. Situação diametralmente oposta ocorre quando da
morte de Clitemnestra: sua chegada é seguida pelos olhares apreensivos do
camponês e do coro de mulheres, pois todos sabem o que vai ocorrer, mas
expressam pelo seu semblante o desejo íntimo de que algo impeça o matricídio.
Os próprios irmãos percebem o diante, presente tanto na peça quanto no filme:
Electra: Certamente sente lástima por ela, agora que a viu.
Orestes: é horrível! Como posso matar a quem me deu a vida?
Electra: como ela matou nosso pai.
Electra: nossa mãe está por chegar em sua magnífica arrogância.
Orestes: o deus se equivocou no oráculo!
Electra: se os deuses se equivocam então ninguém mais tem razão!
Orestes: devo eu matar a minha mãe e me manchar com o seu sangue?
Electra: se não vingar o crime contra o nosso pai, terá a maldição eterna.
Orestes: talvez fosse um demônio falando!
Electra: um demônio no santuário divino? Não, irmão meu.
Orestes: nossos destinos estão malditos.
Qual o maior direito: vingar o pai ou
preservar a vida da mãe? Como escolher entre duas normas tão arraigadas?
Kakogiannis leva o espectador para dentro da cabana, onde um relutante Orestes
e uma (aparentemente) decidida Electra duelam suas dúvidas e certezas; coube ao
homem a mão armada, e à mulher a artimanha, e pouco antes de entrar no cenário
de sua morte iminente, Clitemnestra é avisada pela filha já arrependida:
cuidado para não sujar seu manto na fuligem da cabana. A audiência sabe, tanto
quanto o povo, que o homicídio é inevitável, mas torce até o último momento por
uma redenção que não chega, e diante do fato consumado, o coro de mulheres
vestidas de negro entra em pânico e se contorce, e não mais oferece a Electra o
conforto de seu apoio. Ela e o irmão estão sós, criminosos, e como tais não
merecem acolhimento.
O final contundente do filme, como bem
colocou Alejandro Valverde García, permite ao mesmo efeito de catarse que
Eurípides havia alcançado, numa forma artística diversa, com intensidade igual
ou até mesmo maior. Kakogiannis, com seu texto preciso e direção apurada,
logrou algo maior do que a simples filmagem de uma antiga peça de teatro: ele
foi um tragediógrafo moderno, que bebeu na fonte de Eurípides com respeito e perspicácia,
e fez da obra dele, sua, incorporando as angústias e preocupações do seu
próprio tempo sem mutilar o material recebido. Assistir ‘Electra, a vingadora’ é observar a natureza agreste do campo grego,
dos vales breves e das montanhas pedregosas; é encontrar ecos de humanidade que
viajam da Hélade antiga ao século XX, necessitando apenas de bons tradutores.
BIBLIOGRAFIA
Fonte
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Qual seria o tipo metodologia de história em que deveria ser aplicada em sala de aula com os alunos para um maior entendimento dos filmes? Simone Rita Castagna
ResponderExcluirOlá Simone. O cinema apresenta inúmeras possibilidades para o profissional de História dentro da sala de aula. A forma mais tradicional é apresentar o filme e apontar as falhas de recriação, de acordo com o conhecimento produzido pela historiografia - a megalópole do filme Troia, por exemplo. Mas o modo que mais me atrai é entender o filme como metáfora do conhecimento histórico, o que pretendi fazer com Electra. Assim, o que se conhece daquela história específica? De que maneira o cineasta abordou a história? Quais os artifícios que usou e quais interpretações daquele tempo apresentou? A qual leitura do passado corresponde o filme? Essas perguntas ajudam o aluno a compreender que a História (no geral, e Antiga em particular) é um campo aberto à especulação e à interpretação.
ResponderExcluirTrabalhar o audiovisual na perspectiva da disciplina História é algo profundamente reflexivo, onde o papel do professor é fundamental nas ricas intervenções sobre o traçado histórico, ora ousado, ora reconstruído. Pensamos de acordo com a época em que nos situamos e não podemos negar essa influência, de fato, o cinema e o teatro se tornam ferramentas motivadoras no processo de construção do conhecimento. De que maneira o professor de História pode avaliar o processo, na perspectiva de que a compreensão do seu aluno não esteja restrita apenas a qualidade cinematográfica da obra, ou a sua repercussão visual?
ResponderExcluirOlá Júnior. A compreensão do educando há de se restringir ao audiovisual na medida em que o profissional de história assim o quiser; como exemplo, as aulas de Pré-História, nomeadamente no ensino médio, tem sido progressivamente reduzidas a poucos debates do início de um ano letivo qualquer, e num cenário como este, assistir a Guerra do Fogo pode responder por boa parte do entendimento que este alunado específico terá. Mas veja, a rigor, a compreensão oriunda do filme não representa uma limitação à compreensão do aluno, pelo contrário. Electra, por exemplo, oferece uma oportunidade única para discutir a ideia de barbárie, uma noção grega em sua origem, mas que nos acompanha até hoje. As servas bárbaras de Clitemnestra não são selvagens, e sim pessoas de diferente cultura, e nessa perspectiva, a metáfora fílmica contribui para uma compreensão mais ampla dos conceitos, ao invés de limitá-los ou distorcê-los. Será o nosso trabalho que ampliará as possibilidades do cinema como fonte - como de fato, acontece com qualquer outra fonte histórica.
ResponderExcluirJosé, como levar a sala de aula aqueles filmes que eles não assistem?!
ResponderExcluirAproveite as oportunidades que as novas mídias fornecem, Rafael. Muitos filmes estão disponíveis na Net, podem ser baixados legalmente, foram lançados em DVD ou Blu-Ray. A escola precisa, às vezes, forçar um encontro!
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