José Maria Neto

ELECTRA, A VINGADORA (1962): TEATRO, CINEMA, HISTÓRIA E OS INSONDÁVEIS OLHOS DE IRENE PAPAS
 José Maria Gomes de Souza Neto
UPE


Uma das grandes cenas da peça Electra, de Eurípides (escrita na primeira metade da década de 410 a.C.) é o confronto final entre duas poderosas mulheres: a personagem-título, cuja obsessão em vingar o assassinato do pai Agamênon, herói da guerra de Troia, sobreviveu décadas sem mácula, e Clitemnestra, sua mãe, rainha de Micenas, mentora do homicídio, e que uma vez morta a vítima, casou-se com o autor do feito, o vil Egisto, a quem entregou o trono. Para ser preservado do morticínio, o único herdeiro masculino do monarca, o menino Orestes, foi rapidamente levado para destino incerto, enquanto Electra permaneceu no palácio, memória incômoda dos terríveis acontecimentos.

A jovem é dada em casamento para um camponês – e sua prole, desta feita, não terá direito algum de reclamar herança real – mas o casal de homicidas jamais descansou, pois com o paradeiro de Orestes incerto, um dia ele poderia emergir das sombras do desconhecido para clamar a devida vingança à memória paterna – algo que de fato ocorre, e o sangue de Egisto tinge a espada do jovem príncipe. Faltava, porém, o castigo à mentora, e coube a Electra armar o bem-sucedido estratagema que atraiu a mãe-assassina à cabana onde vivia; o encontro entre as duas antagonistas é marcado por contundente troca de acusações, e Clitemnestra justifica ousadamente o impulso que a moveu:

(...) Na fala da mulher de má fama/ há quem veja um travo de amargor,/ o que não é meu caso. Sabedora/ do que fiz, se o que fiz te parecer/ nefasto, odeia-me; se não teu ódio/ é nulo (...) Quando Agamêmnon levou ao porto de Áulis Ifigênia,/ foi para desposá-la com Aquiles, mas lhe segou o rosto lindo lá,/ no altar. Tivesse sido pelo bem/ da pólis, se o solar corresse risco,/ fosse para salvar os filhos, ainda/ faria sentido alguém morrer por muitos./ Mas foi pela consorte de um sem fibra/ que a imolou, foi por Helena, a lúgubre![EURÍPIDES. Electra, p.120.]

Após a queda, o coice: além de sacrificar a própria filha em prol de causa vã, Agamêmnon, narra a mentora, ainda trouxe à casa outra mulher como sua concubina (ninguém menos que a desditada Cassandra, princesa de Troia e profetisa de atrozes futuros), dupla ofensa à qual foi incapaz de relevar.

Electra ouve as palavras da mãe. O relato lhe encrespa a juba, mas antes de revidar, pergunta: posso levar a sério o que disseste/ sobre eu poder falar de peito aberto?[idem, p.121] A resposta é positiva, e ela ataca:

Sei mais do que ninguém quem és. Sequer/ cogitavam de eliminar tua filha/ nem bem o rei partiu, e as tranças louras/ penteavas, admirando-se no espelho./ A esposa que esmera em produzir-se,/ quando o homem parte, traça um mau perfil. (...) Que outra grega/ se extasiava ao êxito dos troicos,/ ensombrecia o cenho se recuavam/ torcendo contra a volta de Agamêmnon? (...) Se meu pai, como dizes, trucidou/ tua filha, onde erramos eu e Orestes?/ Por que, depois de assassiná-lo, não/ nos deste o que era nosso, o paço, em vez/ de comprar um amante com dinheiro/ alheio? [idem]


A acre troca de acusações não cessa... “Nasceste para amar teu pai. A vida/ é assim: há quem prefira o sexo másculo/ e há quem ame a mãe mais do que o pai”, acusa Clitemnestra, ao que Electra redargue: Tardias lágrimas de crocodilo.../ meu pai não vive mais. Por que não trazes/ ao lar teu filho, um erramundo? [idem, p.123] Esta angustiante altercação nada mais é que a sala de visitas para o ponto máximo da tragédia: a morte de rainha pelas mãos dos próprios filhos.

Ler a tragédia é fundamental, mas vê-la sendo representada é experiência única, de vivência cultural e de exercício do olhar histórico, pois somente a encenação nos faz capazes de compreendê-la em sua completude. Logo, partindo desta perspectiva, encontramos no cinema aliado valioso, oportunidade para a análise visual do teatro grego, e neste particular, poucas obras são tão fortuitas quanto Electra, a vingadora [Ilektra/Ηλέκτρα. Grécia, 1962] do cineasta Mihalis Kakogiannis (1922-2011).*

*Almejando uma carreira internacional, este diretor adotou um nome artístico mais próximo do inglês: Michael Cacoyannis. Como tal, dirigiu sua película mais conhecida internacionalmente: Zorba, o grego (1966), pelo qual foi agraciado com várias indicações a prêmios importantes, como o Oscar (melhor filme, diretor e roteiro adaptado), o Bafta e o Globo de Ouro.

Neste filme, a figura imodesta de Clitemnestra ganha vida através da ateniense Aleka Katselli, de porte altivo e olhar diamantino, contraponto à sublime Electra criada pela atriz Irene Papas, “sóbria como o silêncio, envolta na mais autêntica revolta (...) maior que a vida, os sentimentos e nossas fragilidades”, nas palavras do cineasta Rodrigo Grota [2012].

A arrogância de Clitemnestra é recriada na película, e se Eurípides escreveu que se fazia acompanhar por escravas bárbaras, nobres troianas aprisionadas pelo finado marido, no filme a rainha ostenta aparato semelhante ao delas: maquiagem pesada, cintilante, contraste com a simplicidade esperada de uma helena digna; pesados brincos pendentes, coroa raiada, amplo colar, que envolve todo o pescoço e desce ao colo – embora o filme seja em preto e branco, a impressão áurea deixada nas retinas não deixa dúvidas quanto ao material de que são feitos.


Veste-se, ela própria diz, em rico vestido, tão fino que pede à própria filha que evite tocá-lo ao descer da carruagem, ornamentado com riquíssima borda e listras ondulantes. A origem bárbara de suas vestes e adereços evoca a barbaridade de sua vida infame.

O esplendor real salienta ainda mais a indigência da filha: Electra, mulher de um pobre agricultor, veste roupas grosseiras, escuras, não usa maquiagem, braceletes brincos ou colares, e seus cabelos, contrariamente aos da mãe, não são cuidadosamente arrumados e cobertos pelo véu, mas tosados bem curtos, corte feito de próprio punho ainda no início do filme, como forma de luto não apenas pela memória aviltada do seu pai, mas também pelo casamento indigno ao qual fora designada.


Os olhos de Irene Papas, salientados pela sombra negra, são de abissal profundidade, e cada expressão revela novos aspectos da tragédia: por vezes vislumbram, vazios, o horizonte, como que prenunciando os horrores que estão por vir; noutras são desafiadores, conscientes da obrigação moral que deve ser cumprida, a vingança, e empurram o jovem e titubeante Orestes ao encontro com o destino. Por fim, diante da monstruosidade do assassinato da mãe que a tinha gerado, exprimem dor e desconsolo irremediáveis.

O encontro dessas duas mulheres incendeia a tela; altiva Clitemnestra diz à filha:

Falar-te-ei com serenidade
E quando houver dito a verdade frente aos aqui presentes
Serás a primeira a admiti-la.
 
Nos momentos seguintes, o roteiro de Kakogiannis repete os argumentos criados por Eurípides mais de dois milênios antes; da mesma forma, ao fim do discurso, repete a reação do coro, representado no filme por um grupo de mulheres gregas vestidas em negras vestes, voz inclemente do povo:

Tem razão, mas seus motivos não são honestos
Uma mulher sensata deve perdoar o seu marido, essa é a verdade.

Kakogiannis, como Eurípides, não perdoou Clitemnestra, e Electra expõe os pecadilhos do seu passado, acusa-a de vaidade, dissimulação, prevaricação, confronta sua falta de misericórdia em relação a si mesma e ao irmão, e ainda que por vezes fraqueje em seus propósitos, não deixa de atrair a mãe ao casebre, onde Orestes se encarregou de por-lhe termo à vida.

A obra cinematográfica ilumina a literária e salienta as emoções descritas, e ao fazê-lo, traz para junto do mundo contemporâneo a Antiguidade, pretensamente distante e carente de sentido, sendo, pois, riquíssima oportunidade para a reflexão do profissional de História. É nessa perspectiva que exploraremos o filme Electra, a Vingadora.

Como bem nos ensina Maria Regina Cândido (2009), três realidades mais significativas vem estimulando os estudos de História Antiga no país, a saber, a internet, os núcleos universitários e uma considerável produção cinematográfica; no conjunto, “tais fatores tornaram visíveis os setores de História Antiga e Medieval assim como despertaram os interesses dos discentes da graduação, possibilitando a pesquisa e o ensino de sociedades antigas no Brasil” [Cândido, 2009, p.281-82]. Estas três instâncias, longe de navegarem em paralelo, se entrelaçam a alimentam: a internet tornou possível o acesso a filmes e legendas amiúde inacessíveis em outros momentos, e esse rico acervo vem sendo apropriado pelos investigadores da História, ampliando o campo de pesquisa sobre Antiguidade.

Nem sempre foi assim: tão recentemente quanto os anos 2000, orientávamos um grupo de graduandos numa apresentação da ANPUH regional cuja comunicação versava sobre utilizações do cinema no ensino de história, e um dos presentes regalou a audiência com um comentário espirituoso (ao menos para os próprios ouvidos): a única forma que concebo de utilizar filmes com meus alunos é levando-os ao cinema com bastante pipoca. Tal impostura, por extemporânea que fosse, ecoava profunda rejeição com que nossa disciplina recebeu a nova forma de arte nas primeiras décadas de sua vida. De fato, enquanto outros conhecimentos, como as Ciências Sociais e a Filosofia*, exploravam suas possibilidades, para as mais importantes correntes do pensamento historiográfico da época as películas não constituíam objetos válidos para pesquisa, uma vez que nem se caracterizavam como fontes escritas e oficiais e tampouco revelavam informações de cunho econômico.

*Tardia quando comparada às demais Ciências Humanas. Décadas antes de Ferro, Walter Benjamin já refletia sobre a importância do cinema, e em seu ensaio ‘A obra de arte na época de sua reprodutiilidade técnica’, datado dos anos 1930, afirmava: “as tendências evolutivas da arte nas atuais condições é tão evidente na superestrutura quanto na economia. Por isso, seria equívoco subestimar o valor destas teses para a luta de classes (...) utilizáveis na formulação das exigências revolucionárias na política da arte”. [Apud Lima, 1982, p. 210].


Desta feita, conquanto amplamente difundidos, os filmes eram considerados “diversão de quermesse para indivíduos iletrados” [Ferro, 1992, p.29] e produção anônima, pois segundo “os juristas, as pessoas instruídas, a sociedade dirigente e o Estado, aquilo que não é escrito – a imagem – não tem identidade: como os historiadores poderiam ser referir a ela e mesmo citá-la?” [idem]. Com a espada de Tântalo da verdade* pendendo sobre a cabeça, a historiografia resistia à sétima arte por ser uma inovação técnica recente, declaradamente ficcional, ideológica e, acima de tudo, academicamente suspeita, que distorcia o passado e escamoteava a veracidade dos fatos.

*“Estudantes de todas as áreas tem que tomar decisões sobre como responder ao desafio da dúvida, mas, para os historiadores, o dilema é particularmente grave. Seu ethos profissional sempre foi fundamentado em algumas famosas palavras de Cícero: Quem não sabe que a primeira lei da história é a de que o historiador deve ousar dizer apenas a verdade? E que a segunda lei é a de ter a audácia para dizer a verdade em sua totalidade? E que sua obra não deve levantar suspeitas de parcialidade?” [Fernández-Armesto, 2000, p. 220, 221].


Mais do que acesso à fonte, foi necessário modificar o instrumental teórico e metodológico da disciplina, e o marco inicial dessa transformação foi o artigo O filme: uma contra-análise da sociedade? de Marc Ferro, que compunha o volume História: Novos Objetos, organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora em 1974, no qual o autor discorria sobre as várias potencialidades e técnicas necessárias à abordagem das obras fílmicas, e afirmava que embora os filmes se constituíssem em jogos de câmera e roteiros amiúde tendenciosos ou ufanistas, era precisamente através destes elementos que se poderia estudar um determinado movimento, cultura e sociedade – assim sendo, valiam muito mais pelo que continham intrinsecamente que pelo que exibiam abertamente, abordagem seguida por Cristiane Nova, para quem limitar-se ao mise-em-scène – a autenticidade do figurino ou do cenário – não era suficiente, mas antes indagar os porquês das escolhas narrativas:

A primeira questão a ser levantada diz respeito exatamente à relação passado-presente contida no filme. Qualquer representação do passado existente no filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido. Por exemplo, a escolha de um tema histórico e a forma como ele é representado em uma película são sempre ditadas por influências do presente. [idem]

Ambas as visões convergem no seguinte aspecto: assistir um filme é conhecer a sociedade que o produziu; se se trata de um drama contemporâneo ou de um capa-e-espada é incidental, pois o que aparece na tela é uma narrativa disfarçada daquela contemporaneidade.

Perspectiva um tanto diversa – e que nos interessa diretamente nesse texto – é adotada por Maria Wyke em seu livro Projecting the past: Ancient Rome, Cinema and History, no qual deixa bem clara a “profunda função” que o cinema possui na constituição de uma consciência histórica, uma visão de estudos clássicos que objetiva não somente revelar a Antiguidade, e sim:

mais e mais em expor, ao invés de ocultar, os interesses ideológicos locais – as várias misoginias, etnocentrismos, elitismos e imperialismos – tanto da Antiguidade quanto das suas apropriações subseqüentes [Wyke, 1997, p.7]


Longe de compor uma narrativa de feitos e realidades dadas e acabadas, o estudo da Antiguidade, reflexo da nossa compreensão contemporânea do passado, busca o contrapelo, os conflitos, e não se exime em “definir e debater nossa relação com aquele mundo”, contexto que converte o cinema em local privilegiado para a reflexão histórica.

Filmes, os mais fidedignos como os nem tanto, ao recriar o passado são sempre agentes de construção de cultura histórica, fato claramente perceptível nas produções dos circuitos comerciais, geralmente dotadas de elencos estelares, pesados investimentos econômicos, ostensiva reconstituição de época e efeitos visuais impressionantes. Poderíamos citar vários exemplos desse grupo, majoritariamente norte-americano, do recentíssimo Êxodo: Deuses e Reis [(Exodus: Gods and Kings. Ridley Scott, 2014) que retomou os fiapos da história de Moisés em prol de um espetáculo agressivo] ao pouco mais recuado, embora mais próximo ao nosso tema, Troia [(Troy, Wolfgang Petersen, 2004) cuja representação urbana de Ílion reproduz impressões das megalópoles modernas] – ambos, não obstante imprecisões claras (muitas das quais propositais), possuem a capacidade de tornar verídico o inverossímil, e ao fazê-lo, dizem muito da concepção de História contemporânea e dos olhares lançados à Antiguidade [“filmes históricos, mesmo quando sabemos que são representações fantasiosas ou ideológicas, afetam a maneira como vemos o passado". ROSENSTONE, 2010, p. 18.].

A importância do filme para a historiografia é levada à última potência pelo historiador norte-americano Robert Rosenstone em seu livro A história nos filmes, os filmes na história: amplamente influenciado pelo escritor Hayden White, equipara o filme à produção historiográfica, e o diretor ao historiador, pois tanto a película quanto os livros não só elaboram e rearranjam os vestígios legados pelo passado* quanto, quando necessário, se permitem inventar fatos para compor suas narrativas.

*'Podemos realmente representar o passado, de maneira factual ou ficcional, como ele era? Ou sempre apresentamos apenas alguma versão de como ele possivelmente era ou poderia ter sido? E, em nossas representações, não alteramos inevitavelmente o passado, fazendo-o perder parte do seu sentido pra si mesmo, ou seja, para os seus atores históricos e, ao mesmo tempo, impomos outros significados (os nossos significados) aos acontecimentos e momentos que talvez sejam muito difíceis de reconhecer para aqueles que os vivenciaram? (...) sempre violamos o passado, mesmo quando tentamos, a despeito da mídia usada, preservar a sua memória (...) esta violação é inevitável, faz parte do preço de nossas tentativas de entender a palavra extinta dos nossos ancestrais’. [idem, p.199].

 E ainda que não abracemos tal proposição, não nos parece possível negar que:

(...) as ricas imagens e metáforas visuais que nos fornecem contribuem para que pensarmos historicamente’ (...) o objetivo não é fornecer verdades literais acerca do passado (como se a nossa história escrita pudesse fazê-lo), mas verdades metafóricas que funcionem, em grande medida, como uma espécie de comentário, e desafio, em relação ao discurso histórico tradicional. [idem, p.24]

Nestas construções metafóricas, há que se perguntar: qual o interesse do retorno ao passado? Será, aquele período, mera “ambientação exótica” para o romance ou aventura, ou interação “com aquele discurso, fazendo e tentando responder perguntas que, há muito tempo, circundam um determinado tópico”? [idem, p.74]. No primeiro grupo, situamos boa parte das grandes produções hollywoodianas, sendo o já citado Êxodo: Deuses e Reis o exemplo mais recente dessa escola: não apenas o Antigo Egito é um mero pretexto para cento e cinquenta minutos de violência e velocidade, como, ainda pior, a própria tessitura da narrativa exsuda racismo e preconceito. No segundo grupo, podemos situar o igualmente recente [Noah. Darren Aronofsky, 2014]: grande produção, dispendiosa como as demais de seu gênero, mas que traz em seu bojo preocupações filosóficas infinitamente mais abrangentes que o épico sobre Moisés, e que nos confronta não apenas com questões de ordem prática que a história do dilúvio colocava (como poucas pessoas poderiam tomar conta de tantos animais? Simples, eles dormiram), mas indagações sobre a vida, o destino, a relação entre o humano e o divino, a ética das ações humanas e o papel da religião estabelecida.

Fora do circuito do cinemão norte-americano, Robert Rosenstone situa um outro gênero de recriação histórica, à qual denomina ‘drama inovador’, as “obras criadas para contestar as narrativas perfeitas de heróis e vítimas que constituem o longa-metragem comercial” [Rosenstone, 2010, p.81], e é precisamente neste universo que situamos as recriações do passado empreendidas por Mihalis Kakogiannis, um cipriota de origem grega, cuja obra se insere no movimento pan-helênico de meados do século XX e voltou-se para temas próprios da realidade da Grécia: dramas contemporâneos (Stella, 1955, Eroica, 1960), uma visão quase folclórica das raízes mais profundas daquele povo (Zorba, o grego, 1964), e três produções que retornavam à Hélade – Electra, a vingadora; As troianas [The Trojan Women, 1964] e Ifigênia [Ifigeneia/Ιφιγένεια, 1977] – não como objeto fetichista de busca pelo momento áureo de sua gente, mas antes como complexas construções históricas, elaboradas tanto através de elementos visuais – figurino, maquiagem e cenário – como narrativos.

Kakogiannis percebeu que as verdades e inquietações expressas por Eurípides dois milênios antes continuavam válidas em pleno século XX, e sua trilogia buscou nas tragédias a força das mulheres contra exercícios de poder tirânico e violência, algo particularmente perceptível n’As Troianas, filme no qual uma plêiade de fortíssimas personagens femininas orbita a volta de Hécuba, rainha vencida da arrasada cidade, e resistem às supremas indignidades impostas pelos vitoriosos.

Uma intérprete, em especial, destacou-se nesse universo de diálogo trágico-fílmico: Irene Papas, amiga e musa inspiradora do diretor, presente em suas maiores produções, e intérprete de algumas das personagens mais marcantes da tragédia clássica*: Electra, Helena e, finalmente, Clitemnestra.

*Além das três colaborações com Kakogiannis, Irene Papas encarnou outras célebres personagens gregas sob a batuta de outros diretores: o papel título em Antígona (Antigoni/Αντιγόνη), de Yorgos Javellas (1961), e Penélope, na minissérie italiana L’Odissea, de 1968.

Quem senão esta grega de Corinto poderia representá-las com tanta propriedade? Quem se disporia a, como fez n’As Troianas, despir-se defronte às enfurecidas mulheres troianas, e banhar-se como um cavalo premiado, objeto da cobiça dos helenos vencedores? Que outro olhar, tão belo quanto insondável, poderia exprimir ódio e pesar, desespero e determinação, com um simples arquear de grossas sobrancelhas? Suas performances, transbordantes de existencialismo, ligaram as angústias do V século AEC à contemporaneidade do século XX.

O roteiro de ‘Electra, a vingadora’, assim como a direção, foi trabalho de adaptação do próprio Kakogiannis, e para realizá-lo entabulou interessante diálogo com o teatrólogo, pois qualquer um que vá diretamente à tragédia perceberá que houve mudanças; preferimos não usar o termo “atualização”, pois deixaria implícito que o texto euripidiano seria, de um modo ou de outro, ultrapassado. Preferimos, pois, a transcriação, o ato de co-autoria que o cineasta empreendeu para transpor a distância temporal que o separava do original e traduzi-lo a uma outra mídia – não pretendia teatro filmado, e sim uma tragédia fílmica [“acercar las tragedias antiguas al público actual mediante un realismo que podríamos denominar trágico”. GARCÍA, s/d.], algo totalmente diferente. E foi bem sucedido.

Eurípides dá início à sua obra com um monólogo declamado pelo camponês que acolheu Electra; Kakogiannis, por sua vez, conjurou um prólogo próprio, no qual apresenta à audiência (certamente menos afeita às histórias que o público ateniense) todas as informações necessárias para a compreensão da narrativa: vemos o nobre Agamêmnon chegando à sua capital, Micenas, e a alegria com que é recebido pelo povo, flagrante contraste com a frieza com a qual Clitemnestra mira o horizonte. Ao chegar ao palácio, os únicos abraços amigos que recebe são dos filhos, verdadeiramente alegres com o retorno do pai; sua espada, dá ao menino, penhor de sua futura ascensão ao trono, e desarmado, segue para a banheira, onde é preso por uma rede e assassinado, embora não sem luta, pela mulher e o amante [“sucesión frenética de planos que provoca vértigo, y, de esta forma, con su sello personal enriquece el texto de Eurípides empleando sus propios recursos artísticos para aumentar la tensión dramática”. Idem.]. A menina Electra pressente o ocorrido e desmaia, enquanto um velho servo leva para longe o pequeno Orestes, e enquanto o horror inicial se desenrola, pássaros negros voam no céu.

Outro elemento dissonante entre a peça e o filme é a presença do religioso; seria impensável a um autor da Antiguidade a ausência de tais elementos, e Eurípides não é exceção, algo que fica particularmente claro ao fim da peça, quando se utiliza do recurso do deus ex machina (aparição fortuita de divindade para solucionar questões em aberto da narrativa) para trazer o que poderíamos chamar de final feliz à sua obra, quando os deuses gêmeos Cástor e Pólux instruem os personagens: culpado pela morte da mãe, Orestes não pode assumir sua herança real, mas dirige-se à Atenas onde clamará por misericórdia junto ao templo, enquanto sua irmã casa-se com seu fiel acompanhante, Pílades, que se torna rei de Micenas.

Kakogiannis apresenta uma percepção diversa da tragédia: há, indubitavelmente, a mão pesada do destino, que impulsiona as vontades tal e qual um manipulador de marionetes, mas toda a ação se passa no plano horizontal, do ser humano e dos deveres que sente em relação a si e aos demais, mulheres e homens visceralmente vivos, repletos de ódio e angústia individuais. Por mais que o túmulo raso e sem identificação de Agamêmnon fosse um crime de impiedade (desrespeito aos mortos), é, antes de mais nada, causa de sofrimento para a filha, impossibilitada de demonstrar sua devoção e seu amor ao falecido como sentia necessário. De forma semelhante, a obsessão pelo reencontro com o irmão e a vingança final alimenta Electra ao longo de todo o filme, não como o empuxe transcendental divino, e sim como dever filial e como rancor pessoal [“Tanto o ódio quanto a violência fazem com que seus agentes atuem movidos pela emoção e, por vezes, busquem realizar a vingança com suas próprias mãos. Para Aristóteles, o tempo pode amenizar e até curar a raiva, porém, o ódio é um sentimento incurável e tem por princípio prejudicar, vingar e destruir o oponente”. CÂNDIDO, 2009, p. 205.], especialmente em direção a Egisto, misturado com o desamparo de odiar/amar a própria mãe – o ódio floresce na ausência materna, mas no encontro final (e principalmente após o crime), o amor transparece claramente e alimenta a culpa, aumentando ainda mais o conflito interno vivido pela personagem.*

*É mister citar, ainda que brevemente, a discussão que Manfredo Araújo de Oliveira (1995, p. 107) empreende sobre o sentido do ser humano: “O homem se distingue de tudo mais por uma fundamental abertura, seu ser ainda não está aí, a plenitude de seu existir não está assegurada, ele é fundamentalmente ‘intencionalidade’, ou seja, orientação para uma realização para qual ele está a caminho, mas que, em princípio, pode não vir. O homem é, assim, risco: um ser a caminho de si mesmo (...) um ser que tem que conquistar seu ser”. Electra possui essa abertura, por mais que esteja aguilhoada pelo destino; o seu final não é inevitável, mas escolhido: ela optou pelo horror final do matricídio.

Nessa perspectiva, o final proposto por Eurípides não poderia existir no filme, pois os autores trilharam caminhos diversos na construção de suas narrativas. Após a morte de Clitemnestra, Electra remói a culpa mortal do matricídio, mas solitária do que nunca, pois o homem que a acolhera e as mulheres que a cercaram e protegeram ao longo da exibição agora a rejeitam, sem tolerar o crime horrível que cometera. Quanto a Orestes, vaga perdido pelas montanhas, e seu paradeiro nos é desconhecido – apenas o olhar vazio de sua irmã parece segui-lo, mas ambos desaparecem em fade out, antes mesmo do fim da projeção [“En sus rostros vemos miedo, vergüenza, incertidumbre y una tristeza infinita, como si alguien les hubiera arrebatado el alma. No hay por tanto justificación posible para su acto de venganza”.  GARCÍA, s/d.].

Esta solidão final dos irmãos é significativa, pois como ensina Neyde Theml,

(...) o cidadão [ateniense] convivia com um conjunto de regras não-escritas, reconhecidas por todos, ligadas à tradição, à moral e à religião. Essas regras de conduta estabeleciam uma relação social de honra, cuja sanção se materializava na vergonha e na exclusão social. Honra (timé) e vergonha (aidós/ aischós) regulavam, de certa forma, o comportamento coletivo (...) definiam o que era bem social, fortalecendo os compromissos coletivos e a pertença à mesma sociedade. (...) A tradição expressava uma série de valores, de hábitos, de normas morais e religiosas que se ligavam diretamente à consciência do homem, o qual controlava seu comportamento e se autopunia pelo receio do constrangimento do seu grupo, por medo da perda do seu status ou do seu lugar na sociedade, ou mesmo, da sua morte social. Essas normas referiam-se à organização das relações quotidianas e aos valores da sociedade, tais como, por exemplo: o respeito e proteção aos pais; sepultar os mortos; permitir o inimigo proceder os seus ritos funerários; ser moderado em suas ações, ou seja, ter o controle de si (sophrosýne) (...) Quaisquer atos contrários a esses princípios eram considerados crimes (adikéo significa: ser injusto, não ter razão, prejudicar, molestar) e, neste sentido, era uma violência, à medida que produzia um dato novo que modificava a rotina da sociedade. [Theml, 2009, p.176-77]

Num momento como este percebemos como o filme é um espaço notável da análise histórica: o autor de Electra, a vingadora não seguiu à risca as palavras de Eurípides – e nem pretendeu fazê-lo; todavia, ao arranjar o roteiro adaptado às interpretações dos atores, ao cenário grego, à música, etc., construiu uma metáfora visual extremamente válida para a compreensão da Antiguidade e de sua recepção no mundo contemporâneo.

Os valores sociais presentes na citação estão presentes no filme: vingar o pai, mais do que um direito, era um dever dos irmãos, e ambos se agarraram a ele ao longo da vida; na primeira oportunidade, Orestes mata em duelo o assassino Egisto, e o ato é recebido com festa, tamanha que pode ser ouvida através dos vales, e tochas acesas tornam em dia a noite – a honra familiar estava limpa. Situação diametralmente oposta ocorre quando da morte de Clitemnestra: sua chegada é seguida pelos olhares apreensivos do camponês e do coro de mulheres, pois todos sabem o que vai ocorrer, mas expressam pelo seu semblante o desejo íntimo de que algo impeça o matricídio. Os próprios irmãos percebem o diante, presente tanto na peça quanto no filme:

Electra: Certamente sente lástima por ela, agora que a viu.
Orestes: é horrível! Como posso matar a quem me deu a vida?
Electra: como ela matou nosso pai.

Electra: nossa mãe está por chegar em sua magnífica arrogância.
Orestes: o deus se equivocou no oráculo!
Electra: se os deuses se equivocam então ninguém mais tem razão!
Orestes: devo eu matar a minha mãe e me manchar com o seu sangue?
Electra: se não vingar o crime contra o nosso pai, terá a maldição eterna.
Orestes: talvez fosse um demônio falando!
Electra: um demônio no santuário divino? Não, irmão meu.
Orestes: nossos destinos estão malditos.

Qual o maior direito: vingar o pai ou preservar a vida da mãe? Como escolher entre duas normas tão arraigadas? Kakogiannis leva o espectador para dentro da cabana, onde um relutante Orestes e uma (aparentemente) decidida Electra duelam suas dúvidas e certezas; coube ao homem a mão armada, e à mulher a artimanha, e pouco antes de entrar no cenário de sua morte iminente, Clitemnestra é avisada pela filha já arrependida: cuidado para não sujar seu manto na fuligem da cabana. A audiência sabe, tanto quanto o povo, que o homicídio é inevitável, mas torce até o último momento por uma redenção que não chega, e diante do fato consumado, o coro de mulheres vestidas de negro entra em pânico e se contorce, e não mais oferece a Electra o conforto de seu apoio. Ela e o irmão estão sós, criminosos, e como tais não merecem acolhimento.

O final contundente do filme, como bem colocou Alejandro Valverde García, permite ao mesmo efeito de catarse que Eurípides havia alcançado, numa forma artística diversa, com intensidade igual ou até mesmo maior. Kakogiannis, com seu texto preciso e direção apurada, logrou algo maior do que a simples filmagem de uma antiga peça de teatro: ele foi um tragediógrafo moderno, que bebeu na fonte de Eurípides com respeito e perspicácia, e fez da obra dele, sua, incorporando as angústias e preocupações do seu próprio tempo sem mutilar o material recebido. Assistir ‘Electra, a vingadora’ é observar a natureza agreste do campo grego, dos vales breves e das montanhas pedregosas; é encontrar ecos de humanidade que viajam da Hélade antiga ao século XX, necessitando apenas de bons tradutores.

BIBLIOGRAFIA
Fonte Primária:
EURÍPIDES. Electra. In SÓFOCLES; Eurípides. Electra(s): tradução Trajano Vieira. São Paulo: Ateliê, 2009.

Fontes Secundárias:
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CANDIDO, Maria Regina. A violência e a magia em Atenas. In BUSTAMANTE, Maria Regina da Cunha; MOURA, José Francisco de (orgs). Violência na História. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2009.
CANDIDO, Maria Regina. Pesquisas de antiguidade clássica no Brasil. In: ZIERER, Adriana. XIMENDES, Carlos Alberto (Orgs.). História Antiga e Medieval: Cultura e Ensino. São Luiz: Editora UEMA. 2009.
CODEÇO, Vanessa Ferreira de Sá. Teatro Antigo Grego: Uma Breve Introdução. In: GAIA – Numero 8 – Ano XI. Rio de Janeiro: 2011.
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Verdade: uma História. Rio de Janeiro: Record, 2000.
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
GARCÍA, Alejandro Valverde. Catarsis contra violência em Electra (M. Cacoyannis, 1962). Disponível em http://www.metakinema.es/metakineman2s4a1.html. Acesso em 17 de abril de 2015.
GROTA, Rodrigo. Temporalidade em Electra, de Cacoyannis. Revista Taturana, 04 de fevereiro de 2012. Disponível em https://revistataturana.wordpress.com/2012/02/04/temporalidade-em-electra-de-cacoyannis/. Acesso em 15/04/2015
NOVA, Cristiane. O Cinema e o conhecimento da História. In: Olho da História Número 1. Bahia: UFBA. Disponível em www.ufba.br/revistao. Acesso em 05 de agosto de 2000.
ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
THEML, Neyde. A pólis dos atenienses: direito e violência. In BUSTAMANTE, Maria Regina da Cunha; MOURA, José Francisco de (orgs). Violência na História. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2009.
WYKE, Maria. Projecting the past: Ancient Rome, Cinema and History (New Ancient World). Psychology Press, 1997.

6 comentários:

  1. Qual seria o tipo metodologia de história em que deveria ser aplicada em sala de aula com os alunos para um maior entendimento dos filmes? Simone Rita Castagna

    ResponderExcluir
  2. Olá Simone. O cinema apresenta inúmeras possibilidades para o profissional de História dentro da sala de aula. A forma mais tradicional é apresentar o filme e apontar as falhas de recriação, de acordo com o conhecimento produzido pela historiografia - a megalópole do filme Troia, por exemplo. Mas o modo que mais me atrai é entender o filme como metáfora do conhecimento histórico, o que pretendi fazer com Electra. Assim, o que se conhece daquela história específica? De que maneira o cineasta abordou a história? Quais os artifícios que usou e quais interpretações daquele tempo apresentou? A qual leitura do passado corresponde o filme? Essas perguntas ajudam o aluno a compreender que a História (no geral, e Antiga em particular) é um campo aberto à especulação e à interpretação.

    ResponderExcluir
  3. Trabalhar o audiovisual na perspectiva da disciplina História é algo profundamente reflexivo, onde o papel do professor é fundamental nas ricas intervenções sobre o traçado histórico, ora ousado, ora reconstruído. Pensamos de acordo com a época em que nos situamos e não podemos negar essa influência, de fato, o cinema e o teatro se tornam ferramentas motivadoras no processo de construção do conhecimento. De que maneira o professor de História pode avaliar o processo, na perspectiva de que a compreensão do seu aluno não esteja restrita apenas a qualidade cinematográfica da obra, ou a sua repercussão visual?

    ResponderExcluir
  4. Olá Júnior. A compreensão do educando há de se restringir ao audiovisual na medida em que o profissional de história assim o quiser; como exemplo, as aulas de Pré-História, nomeadamente no ensino médio, tem sido progressivamente reduzidas a poucos debates do início de um ano letivo qualquer, e num cenário como este, assistir a Guerra do Fogo pode responder por boa parte do entendimento que este alunado específico terá. Mas veja, a rigor, a compreensão oriunda do filme não representa uma limitação à compreensão do aluno, pelo contrário. Electra, por exemplo, oferece uma oportunidade única para discutir a ideia de barbárie, uma noção grega em sua origem, mas que nos acompanha até hoje. As servas bárbaras de Clitemnestra não são selvagens, e sim pessoas de diferente cultura, e nessa perspectiva, a metáfora fílmica contribui para uma compreensão mais ampla dos conceitos, ao invés de limitá-los ou distorcê-los. Será o nosso trabalho que ampliará as possibilidades do cinema como fonte - como de fato, acontece com qualquer outra fonte histórica.

    ResponderExcluir
  5. Rafael Moura Roberti15 de maio de 2015 às 05:44

    José, como levar a sala de aula aqueles filmes que eles não assistem?!

    ResponderExcluir
  6. Aproveite as oportunidades que as novas mídias fornecem, Rafael. Muitos filmes estão disponíveis na Net, podem ser baixados legalmente, foram lançados em DVD ou Blu-Ray. A escola precisa, às vezes, forçar um encontro!

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.