Marcela Biasi

OS DESAFIOS DO ENSINO DE HISTÓRIA COM BASE NA LEI 10.639/03
Marcela Biasi de Araújo
UEM


Passados mais de dez anos da criação da Lei 10.639/03 – lei que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Africana e Afro-Brasileira” – ainda nos deparamos com muitos desafios para sua implementação em sala de aula.

Um dos grandes desafios é a falta de conhecimento por parte dos professores sobre a história dos povos africanos, da cultura afro-brasileira e da diversidade de sua construção histórica e cultural. Dessa forma, entende-se que é preciso desenvolver ações estratégicas no âmbito da política de formação continuada desses profissionais, tais formações devem visar o conhecimento sobre a riqueza das contribuições dos povos africanos para a humanidade, a valorização dos povos africanos e a cultura afro-brasileira, bem como sua influência na formação social, política e econômica do Brasil, desmistificando inverdades e mitos preconceituosos.

Um dos maiores obstáculos enfrentados por profissionais da educação é a insuficiência de materiais didáticos e paradidáticos que valorizem nacional e regionalmente a cultura afro-brasileira e sua diversidade. Assim o investimento na promoção e no desenvolvimento de pesquisas para a produção destes materiais é de extrema importância, uma vez que, quanto mais rica e maior for a variedade de materiais que tratem das relações étnico-raciais mais fácil será sua introdução nas escolas.

Outro desafio, se não o maior de todos, que infelizmente ainda acontece no ambiente escolar são as práticas discriminatórias, o bulling e o preconceito racial. Para acabar com esse problema é preciso incorporar no ambiente escolar práticas pedagógicas que visem as relações sociais igualitárias, promovendo uma cultura de valorização do africano e do negro no Brasil.

As ações acima citadas devem contemplar todas as etapas e níveis da educação, começando a partir da educação infantil e abrangendo o ensino superior, uma vez que a Lei nº 10.639/03 determina a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana na perspectiva de construir uma positiva educação para as relações étnico-raciais.

De acordo com o artigo 22 da LDB: “A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando e assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Entendendo que o papel da Educação Infantil é fundamental para o desenvolvimento humano, para a formação da personalidade e para a aprendizagem. Desse modo o ambiente escolar nos primeiros anos de vida se torna um espaço imprescindível no combate e eliminação de qualquer forma de preconceito, racismo e discriminação racial, haja vista que, quanto mais cedo as crianças são incluídas no ambiente escolar e inseridas em atividades que contemplem a Lei 10.639/03 mais cedo estarão propensas a compreender e se envolver conscientemente em ações que conheçam, reconheçam e valorizem a importância dos diferentes grupos ético-raciais para a história e a cultura brasileira. No entanto, para a educação infantil conseguir chegar a tal patamar são necessárias algumas ações, tais como: formação inicial e continuada aos professores e profissionais deste nível de ensino; implantar políticas de promoção da igualdade racial na educação infantil; explicitar nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil as práticas de valorização das diversidades étnico-raciais, bem como ampliar o acesso ao atendimento na educação infantil.

No nível de ensino fundamental, a Lei 10.639/03 deve ser um dos elementos estruturantes do Projeto-Político-Pedagógico, uma vez que, o papel da educação implica numa estreita relação entre crianças, adolescentes e adultos e esta relação deve ser baseada na igualdade, ponderando a peculiaridades de cada sujeito em suas dimensões culturais, familiares e sociais.  Neste nível os desafios a serem vencidos são: assim como na educação infantil assegurar a formação inicial e continuada dos professores e profissionais desta etapa de ensino; equipar as bibliotecas e as salas de leituras com materiais didáticos e paradidáticos com a temática étnico-racial adequados à faixa etária e à região geográfica dos estudantes; abordar de maneira multidisciplinar e interdisciplinar o conteúdo étnico-racial durante todo o ano letivo; construir coletivamente alternativas pedagógicas com suporte de recursos didáticos adequados e utilizar materiais paradidáticos sobre a temática e apoiar a organização de um trabalho pedagógico que contribua para a formação e fortalecimento da autoestima dos jovens, dos docentes e demais profissionais da educação.
           
E na etapa final da educação básica, o ensino médio, considerada a fase em que o indivíduo concretiza as informações e conhecimentos necessários para o exercício da cidadania, fase em que se consolida os meios para o cidadão progredir no trabalho e em estudos posteriores. Ou seja é o momento que precede para poucos jovens, o ingresso na educação superior, na sua formação profissional e também o momento em que muitos jovens se preparam para o mercado de trabalho.

No entanto, essa etapa de ensino por ser a que tem menor cobertura é também onde se encontra a maior desigualdade entre negros e brancos. Desse modo se faz necessário implementar ações que contemplem no ensino médio a Educação das Relações étnico-raciais com o intuito de ampliar e assegurar a permanência de jovens negros e negras nesta etapa de ensino. Dentre as ações destaca-se a importância de: contribuir para o desenvolvimento de práticas pedagógicas reflexivas, participativas e interdisciplinares que possibilitem ao educando o entendimento de nossa estrutura social desigual; prover as bibliotecas e espaços destinados à leitura materiais didáticos e paradidáticos que abordem a temática étnico-racial, adequados à faixa etária e à região geográfica do jovem; incluir nos conteúdos avaliados pelo ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) a temática de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, bem como incluir nos currículos esta discussão como parte integrante da matriz curricular.

Já na Educação Superior, etapa de ensino que especializa e forma o cidadão para o mercado de trabalho os desafios são ainda maiores, uma vez que, a desigualdade entre brancos e negros é ainda maior que no ensino médio. As instituições de ensino superior devem elaborar uma pedagogia antirracista e contra a discriminação, bem como adotar estratégias educacionais pautadas no princípio de igualdade básica entre os seres humanos. Considerando a autonomia das Instituições de Ensino Superior tem em relação a elaboração, execução e avaliação dos cursos e programas que oferecem, bem como de seus projetos institucionais, seus projetos pedagógicos dos cursos e seus planos de ensino articulados à temática étnico-racial, a divulgação da  Lei nº 10.639/03 é de extrema importância para que se inclua nos currículos das IES os conteúdos e disciplinas que versam sobre a Educação das Relações Étnico-raciais. Assim é preciso adotar ações fundamentais para a educação superior, tais como: ampliar o acesso de vagas na educação superior; adotar políticas de cotas raciais e outras afirmativas para o ingresso do estudante negro, negra e indígenas no ensino superior; desmistificar o conceito racista da inserção de cota racial; incentivar a criação de projetos para a valorização da cultura africana e afro-brasileira; fomentar a pesquisa, construção e publicação de materiais didáticos e bibliográficos sobre as questões relativas à Educação das Relações Étnico-Raciais; incluir os conteúdos referentes à Educação das Relações Étnico-Raciais nos instrumentos de avaliação institucional, docente e discente e articular cada uma delas à pesquisa e à extensão, de acordo com as características das IES.

Além dos desafios encontrados no ensino regular para a implementação da Lei nº 10.639/03, nas modalidades de Educação de Jovens e Adultos, Educação tecnológica e formação profissional e até mesmo a Educação Escolar Quilombola também se encontram dificuldades e obstáculos para se trabalhar a temática referente à Educação das Relações Étnico-Raciais.

Na primeira modalidade, entendendo ser uma alternativa para a maioria dos jovens e adultos que por algum motivo se distanciaram da escola na idade de escolarização e que posteriormente voltaram para a escola, são necessárias ações específicas para atender esta clientela: Assegurar à EJA vinculação com o mundo do trabalho por meio de fomento a ações e projetos que pautem a multiplicidade do tripé espaço-tempo-concepção e o respeito à Educação das Relações Étnico-Raciais; estimular as organizações parceiras formadoras de EJA, para articulação do movimento negro local, quando existente, com experiência na formação de professores; valorizar as culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas locais e regionais.

Na segunda modalidade, também conhecida como “Sistema S” (SENAI, SENAC, SENAR, SEBRAE, entre outros), que são entidades corporativas empresariais voltadas para o treinamento profissional, assistência social, consultoria etc. que atuam como modalidades educacionais, na formação de profissionais para o mercado de trabalho, necessitam de ações peculiares, tais como: incrementar os mecanismos de financiamento de forma a possibilitar a expansão do atendimento, propiciando maior acesso aos jovens; manter o diálogo permanente entre os Fóruns de Educação e Diversidade Étnico-Racial, os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas e as instituições das Redes de Educação Profissional e Tecnológica; estimular a parceria destas instituições com outras instituições de ensino com o intuito de criar projetos para a valorização da cultura africana e afro-brasileira.

E por último, a modalidade de Educação Escolar Quilombola, que é a modalidade de ensino desenvolvida em unidades educacionais inscritas em comunidades remanescentes de quilombos, estas unidades necessitam de uma pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade, bem como formação específica de seu quadro de docentes. Essas escolas devem preservar e valorizar sua diversidade cultural, preservando a memória coletiva, as línguas reminiscentes, os marcos civilizatórios, as práticas culturais, as tecnologias e as formas de produção de trabalho, os acervos e repertórios orais, os festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das comunidades quilombolas, bem como sua territorialidade. Para atender essas especificidades algumas ações são fundamentais: apoio a capacitação de gestores locais para o adequado atendimento da educação nas comunidades remanescentes de quilombos, com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola; mapear as condições estruturais e práticas pedagógicas das escolas localizadas em comunidades remanescentes de quilombos e sobre o grau de inserção das crianças, jovens e adultos no sistema escolar; garantir o direito à educação básica para crianças e adolescentes das comunidades remanescentes de quilombos, assim como as modalidades de EJA; ampliar e melhorar a estrutura física das unidades escolares nos quilombos; editar e distribuir materiais didáticos que abordem o processo histórico das comunidades e seu patrimônio cultural e incentivar a relação escola/comunidade no intuito de proporcionar maior interação da população com a educação, fazendo com que o espaço escolar passe a ser fator de integração comunitária.

Observa-se que em todas as modalidades de ensino nestes doze anos de implementação da Lei nº 10.639/03, muito já se fez, no entanto, muito ainda tem que ser feito, essas ações devem sair do papel e ser colocadas em prática no cotidiano escolar. Sendo o Governo em suas três esferas – União, Estado e Município – o indutor e mantenedor físico e financeiro de tais ações e o professor a principal ferramenta da implementação destas ações na escola, visto que, é na sala de aula, na interação professor-aluno que a lei se efetivará de fato.

Dessa forma, cabe ao professor mediar o conhecimento da temática africana e afro-brasileira sob uma perspectiva interdisciplinar e afirmativa que valorizem essa história e assim atingir o objetivo da Lei nº 10.639/03 que é estabelecer uma educação plural e inclusiva, visando incorporar no cotidiano escolar princípios de promoção da igualdade racial, bem como da valorização da miscigenação de vários os povos que constroem esta rica diversidade que tem como fruto a cultura e história brasileira.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei Nº 10.639/03: Diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira".
BRASIL. Ministério da Educação. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei nº 10.639/03; Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16224
BRASIL. Ministério da Educação. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.  Brasília, 2004. Disponível em:
http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/planonacional_10.6391-1.pdf.
PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Educação Básica. História. Curitiba: Secretária de Estado da Educação Paraná, 2008.
SOUZA, Maria Elena Viana. Relações Raciais No Cotidiano Escolar: Diálogos Com A Lei 10.639/03. Rio de Janeiro: Editora Rovelle, 2009.


10 comentários:

  1. Ótimo texto, apartir da sua reflexão é possível garantir as/aos negras/ que tiveram sua participação na construção da história do Brasil por muito tempo, negada e silenciada, somente por meio da efetivação das Leis Nº 10.639/03 o direito de questionar para ressignificar a história oficial?

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    1. Infelizmente foi preciso a criação de uma lei para assim garantir a participação dos negros e as negras na construção da história do Brasil. Entendendo que a posição da verdade na História não é a mesma daquela identi€ficada em outros campos do conhecimento humano, mas sim decorrente das in€finitas análises e interpretações construídas pelos investigadores para compreender o passado. Desse modo a efetivação da Lei 10.639/03 pode sim ressignificar a história oficial.

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    2. Rafael Moura Roberti13 de maio de 2015 às 06:48

      Marcela, excelente texto! Uma consideração: a existência da lei demonstra a preocupação com uma educação plural e inclusiva; por outro lado a necessidade desta lei aponta para uma realidade longe de ser ideal.por quanto tempo ainda teremos uma história oficial?!

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    3. Difícil saber Rafael, até porque a história oficial é um tanto subjetiva, uma vez que ela é fruto da interpretação de alguém sobre um fato e/ou vestígio deixado pelo homem ao longo do tempo e essa interpretação tende a deixar brechas das quais podemos questionar a verdade.

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  2. “A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando e assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”, de acordo com o artigo 22 da LDB. Em relação a Lei 10.639/03, qual a importância de se trabalhar, o quanto mais cedo com crianças em atividades que contemplem essa Lei?


    Gerusa Carolina Kestering

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  3. Acredito que quanto mais cedo a criança trabalhar com a temática que envolve a Lei 10.639/03, mais cedo iremos ter respostas para a inclusão, bem como mais cedo se combaterá o preconceito racial e se valorizará a cultura e história africana e afro brasileira. Entendo ainda que abordando a Lei na educação básica (educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental) irá estabelecer a promoção da igualdade racial desde o ingresso do aluno na vida escolar e assim o preconceito racial e o bulling poderão um dia ser extintos.

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  4. A Lei 10639/03 já existe há 10 anos que defende a temática “ Historia e Cultura Africana e Afro Brasileira” desde o ensino Infantil. Por que ainda existe dificuldades para que essa lei seja implantado em sala de aula?

    Lucimar Gomes da Silva

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  5. Infelizmente no Brasil nem tudo o que é lei se torna prática, principalmente quando se precisa de investimentos.Entendo que a maior dificuldade em implementar esta lei é dar condições - formação, materiais pedagógicos e didáticos - para o professor poder enfim implementar em sala de aula, afinal o professor é o mediador do conhecimento.

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  6. Boa Noite Marcela,
    gostaria de parabenizá-la pelo texto, principalmente no tocante as relações estabelecidas entre os ciclos educacionais e as possibilidades de trabalho com a lei, bem como os apontamentos sobre as dificuldades enfrentadas pelos docentes no desenvolvimento desta proposta. Nesse sentido, você chamou a atenção que durante o Ensino Médio muitos alunos e alunas negras não continuam os estudos em decorrência do preconceito e da discriminação. Quais "cuidados', fatores, particularidades precisam ser consideradas pelo docente, que leciona neste ciclo, para não só implementar a proposta da lei, como reverter minimamente este quadro?
    Emilene Ceará Barboza - professora de História da Escola Técnica de Campinas - SP.

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  7. A triste realidade do Ensino Médio brasileiro é essa, muitos alunos não terminam seus estudos e grande parte da evasão escolar da população afro brasileira se dá em decorrência do preconceito e discriminação, dessa forma o professor é a ferramenta chave nesse processo de implementação da lei, no entanto ele sozinho, sem estar munido de uma formação especializada, bem como ter a sua disposição materiais didáticos e pedagógicos que auxiliem na implementação da lei, não conseguirá fazer muita coisa. Além disso o docente necessita ter tato com o assunto, a situação, uma vez que, quando ocorrer discriminações e preconceitos raciais dentro da sala o professor não pode fingir que não aconteceu nada. É preciso trabalhar essas situações e vou ainda mais longe, não permitir que tais situações ocorram em sala de aula e no ambiente escolar. Por isso a valorização da cultura africana e afro brasileira são importantes, uma vez que, através da valorização poderemos diminuir as desigualdades raciais existentes.

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