DIGITAL HISTORY E FORMAÇÃO DE HISTORIADORES: SUGESTÕES PARA UM DEBATE
Patricia Santos Hansen
Universidade de Lisboa
Universidade de Lisboa
Introdução
O objetivo deste texto é apresentar
algumas das questões que as práticas associadas à chamada Digital History colocam aos historiadores no momento atual. Tais
questões, espera-se, podem talvez contribuir para a formulação de uma pauta de
discussões a ser considerada nos cursos de formação de historiadores, em ambos
os níveis de graduação e pós-graduação, no que diz respeito à(re)elaboração dos
programas de disciplinas obrigatórias, na reformulação de currículos, e/ou na
oferta de disciplinas opcionais.
Não ignoro que a falta de
infraestruturas, em muitas universidades, seja um enorme obstáculo. Porém,
penso que uma vez compreendidas como prioridade (assim como não é possível
haver cursos de informática sem computadores), as condições terão de ser
criadas. Nesse sentido, sendo muito otimista é claro, não vou tratar das
dificuldades postas pelos problemas de infraestrutura material e tecnológica, as
quais são muitas e as realidades diversas, tampouco da falta de recursos
humanos que serão formados conforme a necessidade se apresentar, isto é, quando
estas questões constituírem de fato uma agenda para o ensino superior de
história.
Além disso, a necessidade de
se discutir o tema extravasa as considerações sobre os contributos metodológicos
e práticos que as diversas tecnologias podem oferecer aos profissionais de
história, emesmoa importância da aquisição de competências técnicas básicas para
usufruir destas. Portanto, nesta comunicação procurarei abordar principalmente as
consequências, para o exercício profissional crítico e reflexivo, de situações
geradas ou propiciadas pelo ingresso da Digital
History no universo de atuação dos profissionais de história. Estes serão
aqui considerados como aqueles que se dedicam aos diversos níveis de ensino de
história e/ou à pesquisa na área, por isso também não levarei em conta
dicotomias estabelecidas entre “pesquisadores” e “professores de história”,existentes
em maior ou menor grau em diferentes contextos,considerando o problema concernente
tanto à formação básica destes profissionais, quanto às subsequentes
especializações e áreas de atuação profissional.
O problema
Trata-se de um fato de difícil contestação
que nas últimas décadas a grande maioria dos historiadores de todas as subáreas
disciplinares, tanto no ensino quanto na pesquisa, do mesmo modo que quaisquer
outros profissionais de nível superior, tornaram-se não só usuários como, em
maior ou menor grau, utilizadores dependentes das tecnologias da informação e
comunicação. Tal dependência varia de acordo com fatores que incluem desde as
competências individuais, ou o interesse e oportunidade para aquisição de
competências para utilização das inúmeras ferramentas disponíveis, até a necessidade
posta por problemas de pesquisa ou situações de ensino-aprendizagem,
condicionadas pelos contextos nos quais atuam.
No momento atual, a produção e
a circulação do conhecimento histórico são, e tendem a tornar-secada vez mais,de
formas imprevisíveis, mediadas em muitos aspectos pelas tecnologias da
informação e comunicação (TICs), especialmente pelo uso da internet.Seja devido
aos usos de recursos informáticos na educação, em sala de aula ou pela disseminação
dos cursos em e-learning; pela
facilidade de pesquisa em catálogos ou acervos digitalizados;pela maior
possibilidade de divulgação dos resultados de investigações em periódicos
científicos online e de comunicação
com o público mais amplo através de blogs,
redes sociais e websites; ou ainda,
para aqueles que perseguem uma carreira acadêmica, pela presença em redes profissionais
específicas(Research Gate; Academia.edu; LinkedIn; H-net, etc) que possibilitam
manter-se a par de eventos, publicações, oportunidades de emprego ou
financiamento de pesquisa, mas também por exigências relacionadas à gestão da
produtividade e divulgação de índices métricos individuais, cada vez mais
exigidos por agências de fomento e instituições empregadoras, ou até, na falta
de termo melhor, por razões de “marketing”
curricular. Nesse sentido, as TICs, na medida em que passam a implicar fatores que
condicionam o conhecimento histórico,já não podem mais ser ignoradas pela
reflexão historiográfica. Contudo, também não devem ser desprezadas no que diz
respeito à preparação para o mercado de trabalho e empregabilidade dos futuros
profissionais.
Desnecessário
listar exaustivamente os benefícios trazidos por estas tecnologias para
historiadores profissionais,como os decorrentes da ampliação do acesso às fontes,
das possibilidades de comunicação de resultados de pesquisa e formação de redes
em torno de subáreas disciplinares, dos recursos educativos disponíveis para o
ensino de história, da democratização propiciada pelo e-learning, etc. No entanto, também não é de se desprezar os
encargos trazidos por estas ferramentas, como o aumento exponencial da
bibliografia sobre a qual historiadores precisam manter-se atualizados e tempo
gasto em selecionar o que interessa, muitas vezes perdido em meio a imenso
volume de “lixo acadêmico”, o enorme investimento na “aprendizagem ao longo da
vida” que as tecnologias demandam, agravado, entre outros aspectos, pela sua
rápida obsolescência, os riscos de plágio, desinformação e dificuldades de
identificação de conteúdos fraudulentos por parte do público, além de outros
problemas.Muitos, certamente, têm a sensação desconfortável de incapacidade ou
impotência perante tantos desafios. Mesmo após duas décadas de presença
doméstica da World Wide Web, haverá
ainda um número bastante significativo de profissionais compartilhando o
sentimento,tão familiar no fim do século passado, descrito por Nicolau Sevcenko
como perturbadoramente equivalente à sensação de se estar prestes a mergulhar
no loop de uma montanha-russa:“o mergulho no vácuo, o espasmo caótico e
destrutivo” [Sevcenko, A Corrida Para O Século XXI.]
Também Robert
Darnton, à mesma época, exprimiu num tom mais pessoal seus receios,
resistências e fascinação com a internet.
Cito:
Como muitos acadêmicos, estou prestes a dar o salto
para ciberespaço, e eu estou com medo. O que vou encontrar lá fora? O que eu
vou perder? Será que vou me perder?
Quanto mais me aproximo da fronteira da World Wide Web, mais me apego com
carinho às mídias do passado: a palestra e o livro. Não é notável que ambos
ainda sejam tão fortes em nossos campi,
depois de séculos de uso, apesar do advento da chamada Era da Informação?
Por mais que admire meus colegas mais jovens, que encaixam
música e imagens computadorizada sem suas palestras, eu prefiro falar diretamente
aos meus alunos, armado com nada além de giz e um quadro-negro. Sou um
historiador, e quando trabalho nos arquivos preencho fichas com anotações que
organizo em caixas de sapato, enquanto isso, ao meu redor, a geração mais nova tecla
em PCs portáteis. Eu amo livros, livros à moda antiga, quanto mais antigos
melhor. A meu ver, a cultura do livro alcançou o seu pico mais alto quando
Gutenberg modernizou o códice; e o códice é, em muitos aspectos,superior que o
computador. [...]
A conclusão a que
chega ao final do texto, não obstante, é esperançosa e visionária. O que não
surpreenderá aqueles que, após dezesseis anos, podem testemunhar o modo como
Darnton enfrentou seus receios e resistências:
Quer eu aterre ou não com segurança sobre ele
[o ciberespaço], estou convencido de que a Internet
vai transformar o mundo da aprendizagem. A transformação já começou. Nossa
tarefa, eu acho, é procurar controlá-lo, para que possamos manter os mais altos
padrões de práticas do passado enquanto desenvolvemos outras para o futuro. Que
lugar melhor para começar do que junto aos alunos que agora produzem suas
dissertações? Tendo passado a sua infância com os computadores, eles saberão
para onde vão quando mergulharem no ciberespaço. [Darnton, “A Historian of Books, Lost and Found in Cyberspace.”]
Dezesseis anos depois, tendo
testemunhado a “transformação” a que Darnton se referiu e constatando que ela
foi muito mais radical do que alguém poderia imaginar em 1999, eu concordo com sua
opinião sobre a tarefa de todos os responsáveis pela formação de futuros
historiadores, incluindo os próprios estudantes dos cursos superiores de
história que não são recipientes passivos de uma educação que lhes é alheia, de
procurar “tomar o comando” do ciberespaço para garantir a boa prática
profissional, e volto a perguntar o mesmo: que melhor lugar para começar que nos
cursos de graduação?
Subscrevo esta opinião, pois o
tempo deu razão a Pierre Levy quando afirmou, ainda na mesma década de 1990, que
a cibercultura era o veneno e o remédio para a experiência de cada um no mundo
digital:
[…] nos casos em que processos de inteligência
coletiva desenvolvem-se de forma eficaz graças ao ciberespaço, um de seus
principais efeitos é o de acelerar cada vez mais o ritmo da alteração
tecno-social, o que torna ainda mais necessária a participação ativa na
cibercultura, se não quisermos ficar para trás, e tende a excluir de maneira
mais radical ainda aqueles que não entraram no ciclo positivo da alteração, de
sua compreensão e apropriação. Devido a seu aspecto participativo,
socializante, descompartimentalizante, emancipador, a inteligência coletiva
proposta pela cibercultura constitui um dos melhores remédios para o ritmo
desestabilizante, por vezes excludente, da mutação técnica. Mas, neste mesmo
movimento, a inteligência coletiva trabalha ativamente para a aceleração dessa
mutação. Em grego arcaico, a palavra "pharmakon" […] significa ao
mesmo tempo veneno e remédio. Novo pharmakon,
a inteligência coletiva que favorece a cibercultura é ao mesmo tempo um veneno para
aqueles que dela não participam (e ninguém pode participar completamente dela,
de tão vasta e multiforme que é) e um remédio para aqueles que mergulham em
seus turbilhões e conseguem controlar a própria deriva no meio de suas
correntes.[Levy, Cibercultura]
A metáfora da “deriva” é forte, porém representa um
risco real para muitos futuros historiadores que não tenham oportunidade de
lidar com essas questões durante os seus anos de formação profissional. Mais
ainda, implica em grandes chances de que se crie, num futuro próximo, um abismo
intransponível em relação à qualidade do conhecimento histórico produzido em
países que investem na formação dos historiadores para o uso de novas
tecnologias e para a reflexão sobre as implicações que têm sobre o seu ofício,e
aqueles que ignoram esta realidade. Sem querer assumir um tom alarmista, a
inércia no enfrentamento do assunto poderá, efetivamente, potencializar a
criação de dois cenários distintos, não necessariamente excludentes: a nível
internacional, o de um novo “roubo da história”, onde nações ou povos com mais
recursos passam a monopolizar as narrativas históricas numa dimensão global, sobre
suas próprias sociedades e de outras, seja por terem o domínio sobre as
tecnologias da informação e comunicação, seja por estabelecerem as categorias
pelas quais a história é pensada em todo lado;a nível nacional, o risco é o da
elitização de profissionais de história com recursos particulares e individuais
para superar tais desafios.
“O roubo da história”, título do livro do antropólogo
Jack Goody,“refere-se à apropriação da história pelo Ocidente”. Isto é, ao modo
como o passado foi e é “conceitualizado e apresentado de acordo com o que
aconteceu na escala provincial da Europa, particularmente na da Europa
ocidental, e então imposto ao resto do mundo”.[Goody, The Theft of History, p.1]
Um novo “roubo da história” a partir da Digital History, caso ocorra (se é que já não está a ocorrer), não
será mais eurocêntrico, porém anglocêntrico, como o próprio conceito. Esta preeminência
do inglês, a “língua da internet”, coloca ainda uma outra questão que diz
respeito ao bilinguismo no ambiente acadêmico, uma realidade que se impõe
rapidamente em vários países da Europa, cujas universidades oferecem uma
variedade de cursos em inglês, inclusive nos mais resistentes e apegados
aoidioma nacional, e que agrava o risco para o qual chamei atenção acima, de
uma maior elitização entre historiadores.
Digital History
Digital History é uma designação que
engloba práticas e produtos bastante variados e seus objetos costumam ser
tratados a partir de uma e/ou outra das seguintes perspectivas: como uma forma
de História Pública; ou como parte do grande campo transdisciplinar tem sido
chamado de Digital Humanities. São
termos recentes no léxico acadêmico e não há consenso, entre os que se declaram
praticantes, que permita uma definição fixa dos seus significados. Há
concordância, entretanto, de que algumas das práticas que hoje são
classificadas sob estes rótulos já existiam anteriormente, ou existem em países
onde ainda não se pensa nas relações entre as humanidades em geral, ou a
história em particular, e a informática, as mídias digitais e a internet, sob
os vieses destes conceitos.
Em Portugal e no Brasil, alguns temas começam a ser
debatidos e vêm ganhando visibilidade pelo trabalho de jovens pesquisadores,que
dedicam suas pesquisas de mestrado e doutorado à reflexão sobre tópicos
variados relacionados à Digital History [Ver,
entre outros, Lucchesi, “Digital History e Storiografia Digitale: Estudo Comparado
sobre a Escrita da História no Tempo Presente (2001-2011).”; Aguiar, “Cultura
Digital e Fazer Histórico: Estudo dos Usos e Apropriações das Tecnologias
Digitais de Informação e Comunicação no Ofício do Historiador.”; Dantas, “O
Passado em Bits – Memórias e Histórias na Internet.”], e por
análises desenvolvidas por historiadores mais experientes a respeito de
assuntos correlatos [Por exemplo: Alves, “From ‘Humanities and Computing’ to ‘Digital Humanities’”; Alves,
“Guest Editor’s Introduction”; Boschi, O Historiador, os Arquivos e as Novas
Tecnologias; Tavares, “História e Informática.”; Figueiredo, “História e
Informática: O Uso do Computador.”; Maynard, Escritos sobre História e
Internet.]. Não obstante, a inexistência de centros ou linhas de pesquisa, grupos
de trabalho organizados e redes de colaboração condicionam o modo pelo qual a Digital History existe, é pensada, e se
desenvolve nos respectivos contextos acadêmicos.
De acordo com Willian G. Thomas III, o termo digital history nasceu com a fundação do
Virginia Center for Digital History,
entre 1997-1998, sendo em seguida disseminado em outras atividades acadêmicas como
seminários e projetos de pesquisa.[ JAH -
Journal of American History, “The Promise of Digital History.”] Seu uso tem consequências para a prática e para o próprio conceito de
história, do mesmo modo que o de outros conceitos muito presentes no léxico da
historiografia atual, ainda que não tão novos, como os de “história pública”,
“consciência histórica” e “cultura histórica”. Trata-se,como bem observa Anita
Lucchesi, de um problema que diz respeito à uma história da historiografia no
“tempo presente”[Lucchesi, “Digital
History e Storiografia Digitale:
Estudo Comparado sobre a Escrita da História no Tempo Presente (2001-2011).”].
A autora, aliás, dá uma importante contribuição aos estudos sobre a Digital History ao abordar, da
perspectiva de uma análise dos conceitos, semelhanças, diferenças e conexões entre
a Digital History,tal como praticada
nos Estados Unidos, e a Storiografia Digitale,
praticada na Itália.
Vale lembrar, nesse sentido, a importância de considerarmos
o nome pelo qual o objeto é designado, seguindo os passos de Reinhart Koselleck,
pois o aparecimento de neologismos ou a formulação de novos conceitos são
elementos-chave para a compreensão de determinadas dinâmicas e contextos
históricos, na medida em que as expressões linguísticas fundamentam e
condicionam interpretações e ações sobre a realidade.
Se há falta de consenso a respeito do que é a Digital History, assim como sobre as Digital Humanities, é importante, pelo
menos, considerar a opinião de alguns experts. Em debate promovido pelo Journal of American Studies, durante
alguns meses de 2008, Willian G. Thomas III propôs a seguinte definição como um
primeiro passo neste sentido:
Digital History é uma abordagem para
analisar e representar o passado que trabalha com as novas tecnologias de
comunicação do computador, da Internet, e sistemas de software. De um lado, digital
history é uma arena aberta à produção e comunicação acadêmica, abrangendo o
desenvolvimento de novos materiais didáticos
e conjuntos de dados. De outro, é uma abordagem metodológica enquadrada pelo
poder hipertextual dessas tecnologias para fazer, definir, inquirir, e observar
associações no registro do passado humano. Fazer digital history, então, significa criar um quadro, uma ontologia,
através da tecnologia, para que as pessoas a experimentem, leiam, e acompanhem
uma discussão/argumento sobre um problema histórico.[tradução minha do
original: JAH - Journal of American History, “The Promise of Digital History.]
Willian
Turkel, por sua vez, sublinha que a Digital
History “faz uso de fontes digitais” e que isso impacta o trabalho dos
historiadores, pois estas fontes:
Podem ser criadas e alteradas com relativamente pouco esforço ou despesa
Podem ser duplicadas com custo marginal de quase zero e compartilhadas
por qualquer número de pessoas
Podem ser transmitidas quase que à velocidade da luz
Podem ser armazenadas em escala “nano”
Podem servir como entradas para qualquer processo que possa ser
especificado por algoritmo
Permitem mais facilmente separar a forma do conteúdo
Permitem que os historiadores ganhem os tão conhecidos benefícios de
trabalhar em rede
O uso de fontes digitais, em outras palavras, muda completamente o
panorama dos custos da informação e de negócios que os historiadores têm
tradicionalmente enfrentado [tradução da autora, ibid.]
Sobre a questão das fontes, Daniel Cohen lembra um
artigo de Roy Rosenzweig, um dos pioneiros da Digital History, que analisa dois “futuros possíveis”: a escassez
ou a abundância das fontes. “Escassez, na medida em que os materiais digitais
são muito frágeis e podem desaparecer com um simples toque no delete oupor uma pane magnética, e abundância
pois o armazenamento digital torna virtualmente possível salvar e tornar
globalmente acessível, pela rede, toda e qualquer expressão humana.” [ibid.]
No mesmo debate, vale a pena ainda registrar um
comentário destoante. Trata-se da opinião de Michael Frisch, que se diz “cético
sobre o valor de ‘digital history’ como um termo”, pois, de acordo com o seu
argumento, digital history
ou acabará significando coisas demais ou muito pouco e
logo será tão incontornável (em vinte anos, estará algum profissional
trabalhando em história sem envolver isso sobre o que estamos falando?) que não
será capaz de designar nada que seja suficientemente específico para uma
disciplina, workshop, ou blog. História Quantitativa, por exemplo, veio e se
foi, como rubrica – em parte porque foi vencedora, e muitos historiadores lidam
rotineiramente e efetivamente com dados quantitativos quando querem ou precisam
de um modo fluido e compreensivamente inquisitivo.
Sendo assim, eu estou principalmente interessado em
como, porquê, e, especialmente, em que consequências importantes resultam do
fato de que historiadores estejam fazendo história de novas formas, que eles
possam começar a refletir para onde esses caminhos conduzem e como eles vão
transformar não apenas o que os profissionais fazem e o modo como o fazem – mas
também o que eles produzem e o que isso significa para a compreensão do
passado. [ibid.]
Poderíamos continuar ainda com muitas outras perspectivas sobre a Digital History, incluindo opiniões de
outros historiadores “digitais”, de outros países e continentes, mas penso que
as intervenções citadas permitem vislumbrar o que tem sido discutido. A lista
de problemas colocados pelas TICs aos historiadores é infinita e aumenta a cada
dia, de modo que não vamos aprofundar o assunto. Discussões estão presentes em
periódicos e blogs, e uma boa síntese é dada pelo capítulo “La transformation
des sciences historiques. La part du numérique”[ Vink and Natale, “La transformation des
sciences historiques. La part du numérique.”] do livro Disciplines
Académiques em Transformation: entre innovation et resistánces, que se
coaduna com o tipo de problematização do objeto que é aqui abordado: o das
transformações da disciplina e da necessidade de formar futuros profissionais
cientes destas transformações e aptos a lidar com elas.Vink e Natale, autores
do texto, abordam o problema em seis aspectos: “fontes utilizadas”; a
“redescoberta das dimensões materiais e sociais da produção histórica”; dos
“antecedentes da Humanities Computing
à difusão da informática”; a “revolução informática no trabalho dos
historiadores”; “transformações da pesquisa de informações”; o “paradoxo do
Google: a ‘invisibilização’”; “mediação das relações sociais: a relação entre
pesquisadores e profissionais da informação”; uma “pesquisa mais transversal”;
a “renovação da figura do amador”; “filiação profissional e as formas inalteradas
de promoção na carreira”; “modos de crítica das fontes na era da informática”;
e o “deslocamento [de foco] dos “produtos” para os “processos””.
Tendo a concordar com a opinião de Frisch, de que o termo digital history provavelmente não fará
sentido daqui a alguns anos. Entretanto, penso que sua utilização no momento é
útil, tanto para chamar a atenção no ambiente acadêmico e profissional para as
transformações que se efetuam na disciplina e ao redor, como para circunscrever
um objeto que urge ser pensado, discutido, e incluído entre os conteúdos do
ensino-aprendizagem, pois que afeta o futuro profissional de muitos. Se nos
Estados Unidos, onde o tema tem sido amplamente discutido, um relatório de 2013
proclamava que a “disciplina histórica estava falhando em promover práticas
modernas de pesquisa” [Townsend, “Report Claims History Discipline
Failing in Modern Research Practices.”], o que se dirá de países onde a maioria dos
departamentos de história ou não considera o tema como um problema “departamental”,
ou tratam o assunto como algo que pode ser contornado por iniciativas
individuais de professores interessados?
Sugestões
para um debate
Não se trata de apresentar aqui um programa pronto ou uma
pauta fechada de temas a serem discutidos, até porque cada curso, departamento
ou programa de pós-graduação apresenta condições específicas e terá de
enfrentar diferentes obstáculos. Alguns, certamente, já o fazem. Não obstante,
é possível levantar alguns tópicos a partir da bibliografia sobre o assunto e buscar
informações sobre outras experiências a fim de identificar boas práticas ou
modelos que possam ser adaptados a outros contextos.
O primeiro ponto diz respeito ao levantamento das
infraestruturas e identificação dos recursos humanos disponíveis ou passíveis
de serem mobilizados. Dizer que o debate deve envolver os departamentos de
história como um todo, não quer dizer que, para enfrentar os desafios urgentes referidos
acima, os professores tenham que adquirir uma série de novas competências que
lhes são completamente estranhas de um dia para o outro. A falta total ou a escassez
de infraestruturas e recursos humanos podem, em muitos casos, ser compensadas por
um maior diálogo e cooperação com outros departamentos ou centros de pesquisa
das universidades, pelo recurso à programas de financiamento de projetos,
apoios para contratação de bolsistas, técnicos, etc. Trata-se, então, em muitos
casos, de uma questão de gestão, criatividade e vontade,e também de contornar
dificuldades burocráticas que com frequência atravancam iniciativas
transdisciplinares, interdepartamentais e interinstitucionais. O importante,
contudo, é que os departamentos de
história estejam preparados para atender a uma demanda por parte dos alunos que
só tende a aumentar, na medida em que eles se tornam mais informados e
conscientes das transformações que atingem a profissão, as quais, vale sublinhar,
não dizem respeito unicamente à digital
history, ainda que esta seja provavelmente aquela que mais implica
investimentos materiais e pessoais.
O segundo ponto, complementar ao anterior, é que muito
do que é preciso refletir junto aos estudantes em relação à digital history não exige conhecimentos
técnicos, mas sim experiência e competência profissional em aspectos teóricos e
metodológicos. Formar historiadores críticos e capazes de refletir sobre a
própria prática sempre foi o objetivo dos cursos de história. Grande parte das
questões colocadas pelo uso da internet, - por exemplo em relação à pesquisa de
documentos digitalizados -, não altera os procedimentos básicos de crítica das
fontes e problematização dos arquivos, como a interrogação sobre os critérios
de seleção de documentos, origem, etc. Mais ainda, uma boa parte do problema pode
ser colocado como sendo de caráter ético: como formar profissionais capazes de
praticar uma “história responsável”, nos termos de Antoon De Baets, e não uma
“história negligente” ou “irresponsável” no contexto atual?[ De Baets, “Uma Teoria do Abuso da História.”] Ou, de uma outra perspectiva, que “virtudes epistêmicas” são
necessárias aos historiadores do presente e do futuro?[ Paul, “Performing History.”]
Isso conduz ao terceiro ponto,
o qual diz respeito a dois problemas correlatos. Primeiro, o do investimento na
empregabilidade dos futuros historiadores. Esse problema foi enfrentado, primeiro
nos EUA e depois no Reino Unido, pela criação de cursos de Public History que visam formar profissionais aptos a se inserir em
outros mercados de trabalho que não a academia ou instituições escolares, tais
como a indústria de entretenimento, museus, turismo, etc.[ Sobre os argumentos
que conduziram a esta inflexão no panorama dos cursos universitários de
história nos EUA ver Grafton and Grossman,
“No More Plan B: A Very Modest Proposal for Graduate Programs in History.”] O debate sobre a aquisição de competências técnicas
a fim de ampliar as opções de atuação profissional dos historiadores não deve
ignorar esta questão. O segundo problema é o da concorrência com profissionais
de outras áreas ou amadores no que diz respeito às representações do passado. É
certo que os historiadores nunca tiveram o monopólio das narrativas ou
representações do passado, mas, por outro lado, nunca tiveram tanta
concorrência. Preparar futuros historiadores para o uso de outras mídias, que
não as convencionalmente usadas, significa equipá-los com ferramentas que
permitam explorar criativamente diferentes formas de apresentação do
conhecimento histórico, e também avaliar criticamente produções e recursos
disponíveis.
O ensino de códigos de
programação já é uma realidade para crianças muito pequenas, no ensino básico
nos EUA e em escolas de elite no Brasil. Compreender a lógica da programação
torna-se, com medidas como essa, um dos elementos básicos da literacia digital.
Ainda assim, arrisco discordar da emblemática frase de Le Roy Ladurie,que em
1968, no apogeu do deslumbramento com a história quantitativa, vaticinou: “L’historien
de demain sera programmeur ou ne sera plus”. Hoje, softwares de uso cotidiano fazem o trabalho do ideal do
historiador-programador dos anos 60 e 70. Ainda que considere importante que
enquanto potenciais usuários das novas tecnologias os historiadores estejam
aptos a tirar o maior partido possível dos softwares
disponíveis, o que é facilitado quando setem algumas noções básicas de sua
lógica de funcionamento, penso que o historiador do presente e do futuro estaria
melhor representado pela figura do designer.
É que mais que a lógica de programação, são as exigências dos motores de busca(leia-se
Google), e a interface do usuário (que
lhe sugere uma rota de navegação tal como os “protocolos de leitura” contidos
nos textos e inscritos em seus suportes), que hoje se impõe como determinantes
na produção e comunicação do conhecimento.
Bibliografia
Aguiar, Leandro
Coelho de. “Cultura Digital E Fazer Histórico: Estudo Dos Usos E Apropriações
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Você como autora do texto, acha que um dia o historiador pode ser "substituído" ou corre o risco de perder seu cargo pelos profissionais amadores? Com as novas tecnologias o historiador tem maior chance de concretizar sua profissão, e fazer valer seu papel dentro da sociedade? Afinal, querendo ou não o historiador tem um papel fundamental dentro de um meio social, já que se formou e batalhou para alcançar seu conhecimento histórico e isso deve ser prestigiado.
ResponderExcluirAtt, Valeria Taborda de Almeida.
Prezada Valeria,
Excluirquem confere autoridade e legitimidade ao historiador é a sociedade. Porém, cabe ao historiador mostrar ao público a diferença entre o saber especializado que produz em relação a produção não especializada.
Prezada Conferencista,
ResponderExcluirPatrícia Santos Hansen
Primeiro quero parabenizá-la pela construção de um texto tão prazeroso de se ler e que de forma simples e também brilhante nos coloca em contato (nos inicia) com este tema da Digital History.
Em seu texto você propõe o debate de três (quatro) assuntos/temas relacionado com as questões que envolvem essa área no presente: o problema da “Infraestrutura” dos institutos e departamentos de formação de novos historiadores; a reflexão de que a “digital history não exige conhecimentos técnicos, mas sim experiência e competência profissional em aspectos teóricos e metodológicos”; o “investimento na empregabilidade dos futuros historiadores”; e por fim a “concorrência com profissionais de outras áreas ou amadores no que diz respeito às representações do passado”.
Ao provocar uma discussão sobre esses assuntos eu me pego refletindo sobre a “digital history”, e acrescento aqui outra preocupação. Observo que alguns colegas são excelentes profissionais, lidam muito bem com os aspectos teóricos e metodológicos da História, mas em contrapartida não conseguem se inserir nessa nova realidade que é a internet e as novas tecnologias. Para mim essas novas tecnologias acabam por tornar ainda mais claro os conflitos de gerações, isto é, de um lado temos historiadores habilidosos que lidam com as ferramentas de sua profissão de forma primorosa, e por outro temos uma geração de acadêmicos que lidam com uma habilidade espantosa com as ferramentas da tecnologia, todavia, esses acadêmicos encontram dificuldades para visitar um arquivo empoeirado, lidar com um livro velho cheio de ácaros, ou outras fontes históricas.
Professora Patrícia Santos Hansen, como encontrar um ponto de equilíbrio nessa situação? Como tornar a digital history proveitosa para essas duas gerações (professor/aluno)?
Max Lanio Martins Pina
Caro Max,
ExcluirObrigada pelo elogio ao texto e pelo interesse.
Só uma ressalva: o que eu disse "é que MUITO DO QUE É PRECISO refletir junto aos estudantes em relação à digital history não exige conhecimentos técnicos, mas sim experiência e competência profissional em aspectos teóricos e metodológicos", ou seja, se o problema for enfrentado em conjunto, o expertise dos profissionais sêniores, com mais competências teórico-metodológicas e com mais erudição em suas áreas específicas, complementa o dos profissionais juniores que têm domínio ou facilidade para se adaptar às novas tecnologias. Não é necessário que TODOS os professores de um departamento de história saibam utilizar essas ferramentas, o ideal é que haja oferta de uma ou mais disciplinas específicas. Mas de qualquer modo, ainda que esses historiadores sêniores nunca cheguem a lidar com facilidade com a tecnologia, eles são usuários em algum grau: têm email, preenchem formulários online, fazem inscrição em congressos e pagamentos online e, acredito, acessam arquivos digitais, senão de fontes, ao menos de periódicos científicos. Eles possuem o instrumental crítico necessário para interpelar estas fontes, suportes e arquivos, desde que não se recusem a fazê-lo (isso é outra questão). Por outro lado, você tem toda a razão: para ser um bom historiador não é suficiente fazer pesquisa online e ter muito conhecimento técnico, nem mesmo para atuar na área da digital history, sob o risco de se tornar um historiador irresponsável e pouco crítico.
Sueli de morais
ResponderExcluirprezada conferencista
Com chegada da informatização,não vai fazer com que se perca a magia que envolve o historiador quando este pega um livro para ler ,pesquisar .Sendo que o simples fato de pegar um livro na mão já é uma satisfação ?
Sueli de morais
Prezada Sueli,
Excluiruma coisa não impede a outra. Eu trabalho com história do livro e nesse caso, por exemplo, o suporte é fundamental. Mas as fontes (inclusive os suportes das fontes) dependem dos problemas de pesquisa que, por sua vez, dependem do historiador. Ninguém precisa abandonar os impressos.
Patricia. Como lidar com um dado que hoje está lá, amanhã não está mais?! Como lidar com um dado que hoje está lá e amanhã está lá escrito de forma diferente: editado, comentado, sublinhado, com uma foto a mais ou a menos?! Sou historiador e uso a Internet todo o dia há mais de dez anos. O remédio que ela é, é uma farsa. Nós, cientistas, é que teremos que inventá-lo a partir do veneno. Devemos enfrentá-lo, mas será impossível enquanto a própria sociedade ou seu poder representativo não exigir nela os pré-requisitos de segurança e confiabilidade e também transparência mínima para que ela seja tratada como fonte.
ResponderExcluirCaro Rafael, você tocou em uma questão muito sensível para a digital history. Entretanto, não é exclusividade de acervos digitalizados. Muitos arquivos perdem documentos por falta de condições apropriadas. Eu já tive a experiência de ter pesquisado um livro raro numa grande biblioteca que numa outra vez já não estava lá, simplesmente desapareceu (!), talvez alguém tenha roubado, talvez tenha sido guardado no local errado. Enfim, se este livro estivesse digitalizado estaria "salvo". O historiador deve selecionar as fontes que utiliza, preferencialmente aquelas disponibilizadas por bibliotecas ou aquivos nacionais, com programas de preservação digital, etc. Por isso é importante a data do acesso na referência aos sites. Uma coisa que me preocupa, contudo, é a quantidade de websites produzidos como resultado de projetos de pesquisa financiados que terminado o financiamento não recebem manutenção técnica. Isso implica em sites que não são mais "lidos" pelos browsers, funcionam só em parte ou são tirados do ar.
ExcluirProfessora, parabéns por incitar um debate tão atual quanto a nossa relação com as TICs. Com certeza levarei o debate para o meu espaço acadêmico quando for oportuno.
ResponderExcluirNão tem jeito, quando pensamos, hoje em dia, em pesquisar, um dos primeiros espaços lembrados é a busca digital de informações, mesmo que seja possível ir a um acervo físico. Só para pontuar temos o problema da busca "mal feita", no qual o desconhecimento de alguns comandos, atalhos, enfim, podem prejudicar na descoberta de informações realmente relevantes para determinado tema de pesquisa. Ou seja, não basta ter acesso, é preciso saber usar a ferramenta, não é verdade?
Ainda, vejo muito esse assunto, como você também colocou no seu artigo, dentro de uma área transdisciplinar. Acredito que essa discussão da transdisciplinaridade está ainda avançando enquanto proposta no Brasil. Quando realmente for disseminada e aceita, quem sabe essa formação com as TICs avancem mais. Pois realmente é ingenuidade pensarmos que apenas os profissionais de cada área devem resolver suas dificuldades com as TICs. Os centros ligados diretamente a isso, como informática, precisam "conversar" conosco dentro da universidade.
Por fim, penso essa formação digital dentro da História ligada também ao avanço de outras questões, como a transdisciplinaridade. Ainda vivemos com uma dificuldade de diálogo entre áreas como História e Pedagogia em cursos de licenciatura, por exemplo (quem dirá com a área de informática). Diria que o contexto tende a melhorar, mas passaremos ainda por uma geração que precisa com certeza ser propositiva, e entre erros e acertos, dar a chance para que isso seja mais apropriado por todos em sua formação profissional e também humana.
Obrigada Jailma, fico feliz que tenha gostado!
ResponderExcluirO uso de recursos informáticos pode contribuir para facilitar as pesquisas! Mas com isso os livros ficará esquecidos e com o tempo sendo deixados de lado?
ResponderExcluirO que pode ser feito para que isso não ocorra?
Lucimar Gomes da Silva
Lucimar, reforço o que disse à Sueli, dependendo da pesquisa o acesso direto aos livros ou fontes originais pode ou não ser necessário. De qualquer modo, a digitalização também protege as fontes da excessiva ou descuidada manipulação.
ExcluirDe acordo com HANSEN, [...] “as TICs, na medida em que passam a implicar fatores que condicionam o conhecimento histórico, já não podem mais ser ignoradas pela reflexão historiográfica. Contudo, também não devem ser desprezadas no que diz respeito à preparação para o mercado de trabalho e empregabilidade dos futuros profissionais.” Sendo assim, o que seria importante refletir junto aos estudantes em relação à digital history?
ResponderExcluirELIANE CÂNDIDO
Prezada Eliane,
Excluiros departamentos devem discutir as disciplinas e respectivos programas em conjunto. Mas penso que seria bom combinar conhecimentos práticos e teóricos.
Segundo HANSEN, [...] ” a nível internacional, o de um novo “roubo da história”, onde nações ou povos com mais recursos passam a monopolizar as narrativas históricas numa dimensão global, sobre suas próprias sociedades e de outras, seja por terem o domínio sobre as tecnologias da informação e comunicação, seja por estabelecerem as categorias pelas quais a história é pensada em todo lado”. Deste modo, de que forma os profissionais de História devem superar tais desafios, para preparar futuros historiadores?
ResponderExcluirROSILENE CANDIDO DE AZEVEDO
Cara Rosilene,
ResponderExcluiro primeiro passo é alertar para o problema. A própria história mostra como isso já aconteceu de diferentes formas quando os conhecimentos científicos e tecnológicos são distribuídos desigualmente. Quanto mais conteúdo de boa qualidade disponibilizado online melhor.
Sobre narrativas estereotipadas recomendo o video https://www.google.pt/search?q=o+perigo+da+hist%C3%B3ria+%C3%BAnica&ie=utf-8&oe=utf-8&gws_rd=cr&ei=seBUVbCqBJSqyATcqIGgDg